sexta-feira, 23 de maio de 2014

PCC: ser ou não ser, eis a questão...

Quando Shakespeare, em A Tragédia de Hamlet, narrou todo o dilema existencial de Hamlet, quando descobre as urdiduras de seu tio:

“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer.. dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais-herança do homem:
Morrer para dormir… é uma consumação
Que bem merece e desejamos com fervor.
Dormir… Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios. (...)".

Talvez não tivesse imaginado que a frase pudesse ser usada aqui,  ante a angustiante realidade da execução penal brasileira e da denominada organização criminosa PCC - Primeiro Comando da Capital.

Surgida em São Paulo - Capital, na década de 1990, também conhecida como "Organização 15.3.3", teria sido criada por presos da metrópole paulistana e logo ganharia o Brasil todo, pois que o sistema penitenciário do Brasil costuma espalhar presos de outros Estados para os diversos cantos do País, sem qualquer controle ou registro.

O que pretendo questionar neste pequeno artigo, é essa neura das nossas autoridades de reunirem os tais integrantes do PCC em todo e qualquer presídio, simplesmente com base no "ouvi dizer que fulano é do PCC".

Dentro dos presídios brasileiros (e aqui no nosso Estado isso não seria diferente), criou-se o costume de separar por celas ou raios, os presos que seriam supostamente integrantes do PCC (mesmo que nada exista de prova em relação a isso), daqueles que não são.

E quando um preso é classificado como "integrante do PCC", coitado dele! Pois estará marcado eternamente pela pecha de subversivo, perigoso, matador de policiais, capaz das mais variadas atrocidades.

Lembrei-me daquela teoria do etiquetamento, a  LABELLING APPROACH, segundo a qual, os indivíduos encarcerados são inexoravelmente etiquetados e não perdem mais essa etiqueta, até o final de suas vidas, levando inclusive para fora de suas celas, a identidade de criminosos, porque o Estado os rotulou assim.

Mas, analisando o cerne da questão, será que nossas autoridades não imaginaram que ao segregarem homens em locais infectos, pegajosos e úmidos, antros de corrupções e torturas, como são os presídios brasileiros, os homens ali encarcerados não se organizariam de alguma forma?  Ainda que contra quem os segregou?

Quando se encarcera um homem e lhe dão um número, em vez de um  nome, isso nada mais é do que um processo de destruição de sua identidade, como bem Foucault explica em seu grande livro VIGIAR E PUNIR.

Há como que uma infantilização forçada de homens adultos, que são forçados pelo Estado, a andarem de cabeça baixa, mãos pra trás, repetindo indefinidamente "sim, senhor!", pelos cárceres que passarem.

Bem, se despertaram para a necessidade de criar uma organização, ainda que criminosa, é sinal de que a teoria do etiquetamento funcionou às avessas. Os presos, mesmo etiquetados como integrantes de uma organização criminosa, aceitaram essa etiqueta e tornaram-na forte, contra o Estado (rs).

Mesmo dentro de ambientes degradados, sob o cuidado dos vigilantes estatais, os presos foram capazes de se organizar, de estabelecer uma pauta de reivindicações (ainda que algumas reivindicações sejam ilegais) e de engendrar suas ações mesmo fora dos muros que os separam da sociedade.

Quando Erving Goffman e Howard Becker, 1960, identificaram essa chamada Teoria do Etiquetamento, 'labelling approach', penso eu que eles não imaginaram que indivíduos etiquetados, estigmatizados, pudessem usar desse mesmo estigma para transcender  a condição de párias e enxergar virtudes e méritos por pertencerem a esse mesmo grupo que a sociedade estigmatizou. Ou seja, aquilo que era para ser uma vergonha (fazer parte da clientela prisional), passou a ser, no Brasil, com o PCC, motivo de orgulho e resistência contra aquilo que os presos chamam apenas de 'opressão'.

Mas nem era isso que eu queria trazer à reflexão em  meu artigo.

O que eu pretendo é denunciar que muitos presos, novos presos, vêm sendo encarcerados em presídios nacionais, deliberada e erroneamente classificados como integrantes do PCC.

E que quando são presos, acabam sendo encaminhados às celas ou raios onde estão outros presos, estes, sim, integrantes da famigerada organização do PCC. E lá, entre aqueles que o Estado julgou serem "seus iguais", se o novo encarcerado não era integrante do PCC, passará a sê-lo. Isso porque seus colegas de cela se encarregarão de persuadi-lo de que melhor negócio fará se se integrar à organização criminosa.

Vejo, na prática forense penal,  que não há nenhuma cautela, cuidado, pesquisa, análise, para se classificar um preso como integrante do PCC e direcioná-lo para locais, dentro dos presídios nacionais, onde estão outros presos pré - classificados como sendo integrantes do PCC.

Uma pessoa de bom senso diria: - Mas não seria mais inteligente separá-los?

Claro que sim. Uma pessoa inteligente diria: - Para pôr fim a essa organização, o Estado deve oferecer aos seus supostos integrantes, benefícios penais, trabalho, defensores... Tudo com a condição de que eles se separem do PCC.

Deve, inclusive, isolá-los, seja de outros integrantes do PCC, seja de presos que essas pessoas possam influenciar de maneira negativa.

Contudo, não é assim que vem agindo a autoridade carcerária brasileira. Nesse ponto, optaram descaradamente pela adoção da chamada TEORIA DO ETIQUETAMENTO. E estão colhendo e colherão, ainda nesta década, os frutos amargos dessa escolha. A escolha de juntar os etiquetados "INTEGRANTES DO PCC" em antros, onde merecem tratamento mais severo do que o dado a outros presos, onde são sempre os primeiros a serem punidos pelas rebeliões que surgem, onde são sempre os presos sancionados pelo famoso RDD - Regime Disciplinar Diferenciado, onde são sempre os últimos a serem beneficiados por progressão e livramento,  onde as autoridades estão, na verdade, juntando esses indivíduos e forçando os mesmo a se unirem CONTRA O ESTADO DE DIREITO e contra os legitimados para contê-los e reeducá-los.

Governos estaduais deflagram "campanhas contra o PCC", novos homens são presos como supostos "integrantes do PCC". Os quais são interrogados SEM A PRESENÇA DE ADVOGADOS OU DEFENSORES e assumem que são mesmo integrantes do PCC, sendo que depois disso, seus nomes e rostos são estampados, com rapidez, em noticiários, inclusive da internet, em tempo real.

E dali, das delegacias de polícia, são levados aos presídios brasileiros, para celas e raios onde estão outros indivíduos, também classificados como integrantes do PCC. Bem, o que nossas autoridades não percebem é que estão fazendo justamente o fortalecimento dessa organização criminosa, estão agregando e não dissociando. O próprio estado brasileiro, na sua afoiteza e descuido em classificar e juntar esses presos, acaba fazendo o serviço de aumentar suas fileiras. Quando a solução do problema caminha em direção OPOSTA!

O preso, não integrante do PCC, que é definido como tal pelo estado brasileiro e de pronto encarcerado com presos do PCC, vê-se em um legítimo dilema shakespeariano: ser ou não ser. Pois se o próprio estado lhe definiu assim, é como se lhe fechassem as portas a qualquer esperança de recuperação. E quando ele encontra outros presos que se apressam em chamá-lo de "irmão", que convidam-no ao juramento de filiação a essa organização paralela ao Estado, esse preso, que não era integrante do PCC, vê-se tentado a sê-lo, simplesmente porque ante uma porta que se fechou, outra se abre ansiosa por recebê-lo.

O Estado brasileiro vai e prende o indivíduo, coage, joga em seu rosto que ele é membro do PCC (mesmo sem sê-lo), o preso assume ser o que não é, porque está sendo coagido... O Estado brasileiro vai e encarcera esse indíviduo, com muitos outros que passaram pelo mesmo tratamento... Resultado?

Esse novo preso, seja ou não do PCC, vai se unir com outros encarcerados, definidos pelo Estado brasileiro como sendo integrantes do PCC. Pois ele só tem a ganhar com isso! Sim, meus caros... O PCC paga defensores para os presos, que vêm vê-los toda semana. Já o Estado conta com um defensor público, que visita o preso uma vez a cada seis meses. O PCC paga para família do preso se manter aqui fora... O Estado tenta fazer frente com um salário - mínimo a título de auxílio à família do preso, isso se ele tiver contribuído pro INSS.

Parece bem claro que os presos, unidos em um lugar onde só há presos supostamente agregados ao PCC, vão se unir contra o Estado. É o que vem acontecendo, de norte a sul do Brasil. 

Não estão combatendo o PCC. Estão, na verdade, fortalecendo esse movimento.

Ainda não terminei esse artigo, pensarei mais um pouco e voltarei para conclui-lo.

Por hora, são apenas algumas ideias, que achei importante externar.
 

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