quarta-feira, 14 de maio de 2014

O CBT e a nova lei 12.971 de 9.5.2014



Foi sancionada no último dia 9 de maio de 2014, a Lei 12.971, que altera o Código Brasileiro de Trânsito, Lei 9.503/1997.
Trazendo uma vacatio legis de seis meses, a nova lei só entrará em vigor no país no dia 1o. de novembro de 2014.
No entanto, a lei já causa polêmicas, como citamos na nossa penúltima postagem, artigo do Professor Luiz Flávio Gomes.
O que nos causou espanto, foi a análise que o legislador brasileiro fez a respeito do racha de veículos, com consequência morte. 
Vejam só: se um motorista, dirigindo imprudentemente (mas não em racha de veículos), mata uma pessoa, sua pena será de reclusão de 2 a 4 anos, até este momento, pena de detenção. Mas se esse mesmo motorista, fazendo racha de veículos, apenas lesionar uma pessoa, a pena já será de reclusão de 3 a 6 anos. Ora, não pode a pena para o homicídio ser menor do que a pena para a lesão. Até porque, diz o mesmo legislador que o racha de veículos do artigo em questão é sem dolo, ou seja, crime culposo também.
Contudo, queremos refletir ainda mais a respeito do artigo 308 da nova lei:
"Art.308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada;
Pena: detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1o  Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo."
 O STF já havia pacificado que racha de veículos gera dolo eventual para o crime de homicídio, artigo 121 do CP (vide HC 101698 do STF).
Nesse julgado entendeu o Supremo que dirigir estando embriagado e matar alguém no trânsito é caso de crime culposo e não doloso, pois estaria havendo uma banalização da teoria da "actio libera in causa".

Já a conduta de dirigir fazendo rachas e matar alguém, o caso era de dolo eventual. Inclusive citamos, desse julgado HC 101698 STF, os seguintes trechos:
"14. A diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente encontra-se no elemento volitivo que, ante a impossibilidade de penetrar-se na psique do agente, exige a observação de todas as circunstâncias objetivas do caso concreto, sendo certo que, em ambas as situações, ocorre a representação do resultado pelo agente.
15.Deveras, tratando-se de culpa consciente, o agente pratica o fato ciente de que o resultado lesivo, embora previsto por ele, não ocorrerá. Doutrina de Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. 1., p. 116-117); Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal – parte geral, Rio de Janeiro: Forense, 2006, 17. ed., p. 173 – grifo adicionado) e Zaffaroni e Pierangelli (Manual de Direito Penal, Parte Geral, v. 1, 9. ed – São Paulo: RT, 2011, pp. 434-435 – grifos adicionados).
 16.A cognição empreendida nas instâncias originárias demonstrou que o paciente, ao lançar-se em práticas de expressiva periculosidade, em via pública, mediante alta velocidade, consentiu em que o resultado se produzisse, incidindo no dolo eventual previsto no art. 18, inciso I, segunda parte,verbis: (“Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo ” - grifei).
17.A notória periculosidade dessas práticas de competições automobilísticas em vias públicas gerou a edição de legislação especial prevendo-as como crime autônomo, no art. 308 do CTB, in verbis: “Art 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:”.
18. O art. 308 do CTB é crime doloso de perigo concreto que, se concretizado em lesão corporal ou homicídio, progride para os crimes dos artigos 129 ou 121, em sua forma dolosa, porquanto seria um contra-senso transmudar um delito doloso em culposo, em razão do advento de um resultado mais grave. Doutrina de José Marcos Marrone (Delitos de Trânsito Brasileiro: Lei n. 9.503/97. São Paulo: Atlas, 1998, p. 76).
19. É cediço na Corte que, em se tratando de homicídio praticado na direção de veículo automotor em decorrência do chamado “racha”, a conduta configura homicídio doloso. Precedentes: HC 91159/MG, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ de 24/10/2008; HC 71800/RS, rel. Min. Celso de Mello, 1ªTurma, DJ de 3/5/1996."

A pena para esse crime era de 6 a 20 anos de reclusão, pois enquadrava-se no artigo 121, caput, CP.
A nova redação do artigo 308 do CBT veio dizer, para bom entendedor, que é possível um agente criminoso, dirigir em racha de veículos, com culpa (imaginamos que consciente nesse caso) e não com dolo eventual. Mas o legislador acentua que se as "circunstâncias demonstrarem que o agente NÃO quis o resultado..." (dolo direto) "ou NÃO assumiu o risco de produzir o resultado..." (dolo eventual), a pena é de 3 a 6 anos de reclusão, "sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo", que pensamos, seja a do caput do mesmo artigo. 
Ou seja, ainda ressalva o texto legal que pode haver racha de veículos, com morte, que se amolde ao tipo penal do artigo 121, caput, CP.
A nosso ver, o que o legislador brasileiro fez, foi trazer nova celeuma no cenário jurídico nacional, dizendo "olhem, julgadores brasileiros, há racha de veículos com morte que é caso de culpa e não de dolo". Ou seja, o Ministério Público deve denunciar por homicídio doloso, a defesa deve bater até a última instância pela teses do crime preterdoloso do artigo 308 CBT e a justiça deve tardar no caso concreto por muitos anos, fazendo crescer a sensação de impunidade.
Outra crítica pontual é que com a mudança na lei, passamos a ter um caso raro na nossa legislação penal, porque uma mesma conduta criminosa vai gerar dois tipos de incriminação.
Pensamos que não haveria problemas em se prever dessa maneira, tivesse o caput apenas punições administrativas (multa e suspensão da carteira), mas na medida em que gera pena privativa de liberdade, também, temos uma óbvia dupla punição pela mesma conduta.
Podemos aventar que "dirigir fazendo racha" é a primeira conduta criminosa e "causar  morte ou lesão" a segunda. Contudo, é inegável que dirigir fazendo racha é ato de um único iter criminis quando se trata de matar alguém. Ou seja, o legislador segmentou uma conduta criminosa que a nosso ver é uma só: racha de veículos com morte.
Andou mal o legislador nessa forma de legislar, porque poderia muito bem ter usado a técnica de criação de tipos penais complexos (que são aqueles em que se fundem em um mesmo tipo penal, ofensa a dois ou mais bens jurídicos), como o latrocínio.
A maneira como se legislou sobre o tema, demonstra uma total ignorância de certos institutos do Direito Penal, de há muito sedimentados na lei, na doutrina e na jurisprudência, como a regra do "non bis in idem" e o principio da consunção.
O absurdo é tão grande, que seria o mesmo que o legislador resolver punir um homicida pelos golpes de faca que desfere na vítima e mais o homicídio que causou com tais golpes.
Evidentemente que fazer racha e matar alguém nesse racha de veículos, tudo se subsume numa única conduta criminosa, que deveria, então, ter sido prevista em um tipo penal único, com a pena mais elevada que a prevista no artigo 308.
Mas a nossa confusão mental segue, ao lermos o parágrafo 2o, do mesmo artigo:
"§ 2o  Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.” (NR)
E indagamos seriamente se é mesmo possível alguém dirigir fazendo racha e não assumir, pelo menos, o risco da sua conduta. E quais seriam as circunstâncias que fariam presumir que o agente não quis, nem assumiu o risco, ao dirigir fazendo racha.
Voltando à distinção clássica entre dolo eventual e culpa consciente, temos o dolo eventual quando um agente diz a si mesmo, mentalmente, "se ocorrer morte, para mim pouco importa"; e temos culpa consciente, quando o agente diz a si mesmo, mentalmente, "se houver possibilidade de morte, acredito que serei capaz de evitá-la". Já o dolo direto é o querer um resultado.
Pensamos que o novo parágrafo do artigo 308 trará grandes desafios para nossos julgadores e intérpretes das leis penais. O desafio é analisar quando dois motoristas, fazendo racha de veículos, não querem, nem assumem o risco de um deles morrer. É fazer justamente aquilo que o julgado acima (STF) acentuou a dificuldade: adentrar a psique do agente. Pois não acreditamos que circunstâncias externas venham demonstrar o oposto.
Ou seja, nossos legisladores ignoraram por completo decisões inclusive de nossa mais alta Corte, o STF, nas quais já se laborou na tese do homicídio com assunção de risco nessa hipótese.
Eis, então, o desafio que tal mudança propõe: ignorar tudo que se pensou sobre o assunto, em longas e cansativas leituras e meditações, para se ajustar uma determinada conduta de uma forma diferente da que se vinha fazendo.
A nosso ver, caros estudantes, será declinar do bom senso, para se adotar o absurdo.
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Comentário um dia após o texto acima:
 Após uma noite de sono, despertei com a ideia de que o que pretenderam foi criar um crime preterdoloso. O racha de veículos é doloso (óbvio), já o resultado morte, que o legislador agora vem dizer que não é desejado, culposo. Na verdade, usaram texto semelhante ao do artigo 129, p. 3o. CP. Mas ressalvaram que esse crime pode continuar sendo doloso. O resultado prático disso, é que o MP deverá denunciar esses casos como homicídio doloso e a defesa deverá brigar até a última instância, pela tese do crime preterdoloso, o que deve fazer com que os casos se arrastem, indefinidos e sem solução, por muitos anos. Até que o STF, de novo, encontre uma fórmula mágica de imaginar racha de veículos com morte, que seja culposo... Distinguindo-o de racha de veículos que seja doloso.
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Outra questão interessante: o Professor Luiz Flávio Gomes entendeu que o tipo penal do novo artigo 302, parágrafo 2o, CBT:
§ 2o. Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:


Confunde-se com o novo tipo legal do artigo 308 acima. Pois ambas as condutas dizem respeito à disputa de rachas em pistas de corrida ou vias públicas.

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