Foi
sancionada no último dia 9 de maio de 2014, a Lei 12.971, que altera o Código Brasileiro de Trânsito, Lei 9.503/1997.
Trazendo
uma vacatio legis de seis meses, a nova lei só entrará em vigor no país
no dia 1o. de novembro de 2014.
No
entanto, a lei já causa polêmicas, como citamos na nossa penúltima postagem,
artigo do Professor Luiz Flávio Gomes.
O
que nos causou espanto, foi a análise que o legislador brasileiro fez a
respeito do racha de veículos, com consequência morte.
Vejam
só: se um motorista, dirigindo imprudentemente (mas não em racha de veículos),
mata uma pessoa, sua pena será de reclusão de 2 a 4 anos, até este momento, pena de detenção. Mas se
esse mesmo motorista, fazendo racha de veículos, apenas lesionar uma pessoa, a
pena já será de reclusão de 3 a 6 anos. Ora, não pode a pena para o homicídio ser menor do que
a pena para a lesão. Até porque, diz o mesmo legislador que o racha de veículos
do artigo em questão é sem dolo, ou seja, crime culposo também.
Contudo,
queremos refletir ainda mais a respeito do artigo 308 da nova lei:
"Art.308. Participar, na direção de veículo
automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística
não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à
incolumidade pública ou privada;
Pena: detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Pena: detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§
1o Se da prática do crime previsto no caput resultar
lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o
agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena
privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo
das outras penas previstas neste artigo."
O
STF já havia pacificado que racha de veículos gera dolo eventual para o crime
de homicídio, artigo 121 do CP (vide HC 101698 do STF).
Nesse julgado entendeu o Supremo
que dirigir estando embriagado e matar alguém no trânsito é caso de crime
culposo e não doloso, pois estaria havendo uma banalização da teoria da
"actio libera in causa".
Já a conduta de dirigir fazendo rachas e matar
alguém, o caso era de dolo eventual. Inclusive citamos, desse julgado HC 101698
STF, os seguintes trechos:
"14. A diferença entre o
dolo eventual e a culpa consciente encontra-se no elemento volitivo que, ante a
impossibilidade de penetrar-se na psique do agente, exige a observação de todas
as circunstâncias objetivas do caso concreto, sendo certo que, em ambas as
situações, ocorre a representação do resultado pelo agente.
15.Deveras, tratando-se de culpa
consciente, o agente pratica o fato ciente de que o resultado lesivo, embora
previsto por ele, não ocorrerá. Doutrina de Nelson Hungria (Comentários ao
Código Penal, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. 1., p. 116-117); Heleno
Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal – parte geral, Rio de Janeiro:
Forense, 2006, 17. ed., p. 173 – grifo adicionado) e Zaffaroni e Pierangelli
(Manual de Direito Penal, Parte Geral, v. 1, 9. ed – São Paulo: RT, 2011, pp.
434-435 – grifos adicionados).
16.A cognição empreendida
nas instâncias originárias demonstrou que o paciente, ao lançar-se em práticas
de expressiva periculosidade, em via pública, mediante alta velocidade,
consentiu em que o resultado se produzisse, incidindo no dolo eventual previsto
no art. 18, inciso I, segunda parte,verbis: (“Diz-se o crime: I – doloso,
quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo ” - grifei).
17.A notória periculosidade
dessas práticas de competições automobilísticas em vias públicas gerou a edição
de legislação especial prevendo-as como crime autônomo, no art. 308 do CTB, in
verbis: “Art 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública,
de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela
autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública
ou privada:”.
18. O art. 308 do CTB é crime
doloso de perigo concreto que, se concretizado em lesão corporal ou homicídio,
progride para os crimes dos artigos 129 ou 121, em sua forma dolosa, porquanto
seria um contra-senso transmudar um delito doloso em culposo, em razão do
advento de um resultado mais grave. Doutrina de José Marcos Marrone (Delitos de
Trânsito Brasileiro: Lei n. 9.503/97. São Paulo: Atlas, 1998, p. 76).
19. É cediço na Corte que, em se
tratando de homicídio praticado na direção de veículo automotor em decorrência
do chamado “racha”, a conduta configura homicídio doloso. Precedentes: HC
91159/MG, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ de 24/10/2008; HC 71800/RS, rel.
Min. Celso de Mello, 1ªTurma, DJ de 3/5/1996."
A pena para esse crime era de 6 a
20 anos de reclusão, pois enquadrava-se no artigo 121, caput, CP.
A nova redação do artigo 308 do
CBT veio dizer, para bom entendedor, que é possível um agente criminoso,
dirigir em racha de veículos, com culpa (imaginamos que consciente nesse caso)
e não com dolo eventual. Mas o legislador acentua que se as
"circunstâncias demonstrarem que o agente NÃO quis o resultado..." (dolo
direto) "ou NÃO assumiu o risco de produzir o resultado..." (dolo
eventual), a pena é de 3 a 6 anos de reclusão, "sem prejuízo das outras
penas previstas neste artigo", que pensamos, seja a do caput do
mesmo artigo.
Ou seja, ainda ressalva o texto legal que pode haver racha de veículos, com morte, que se amolde ao tipo penal do artigo 121, caput, CP.
A nosso ver, o que o legislador brasileiro fez, foi trazer nova celeuma no cenário jurídico nacional, dizendo "olhem, julgadores brasileiros, há racha de veículos com morte que é caso de culpa e não de dolo". Ou seja, o Ministério Público deve denunciar por homicídio doloso, a defesa deve bater até a última instância pela teses do crime preterdoloso do artigo 308 CBT e a justiça deve tardar no caso concreto por muitos anos, fazendo crescer a sensação de impunidade.
Ou seja, ainda ressalva o texto legal que pode haver racha de veículos, com morte, que se amolde ao tipo penal do artigo 121, caput, CP.
A nosso ver, o que o legislador brasileiro fez, foi trazer nova celeuma no cenário jurídico nacional, dizendo "olhem, julgadores brasileiros, há racha de veículos com morte que é caso de culpa e não de dolo". Ou seja, o Ministério Público deve denunciar por homicídio doloso, a defesa deve bater até a última instância pela teses do crime preterdoloso do artigo 308 CBT e a justiça deve tardar no caso concreto por muitos anos, fazendo crescer a sensação de impunidade.
Outra crítica pontual é que com a mudança na lei, passamos a ter um caso raro na
nossa legislação penal, porque uma mesma conduta criminosa vai gerar dois tipos
de incriminação.
Pensamos que não haveria
problemas em se prever dessa maneira, tivesse o caput apenas punições
administrativas (multa e suspensão da carteira), mas na medida em que gera pena
privativa de liberdade, também, temos uma óbvia dupla punição pela mesma
conduta.
Podemos aventar que "dirigir
fazendo racha" é a primeira conduta criminosa e "causar morte
ou lesão" a segunda. Contudo, é inegável que dirigir fazendo racha é ato
de um único iter criminis quando se trata de matar alguém. Ou seja, o legislador segmentou uma conduta criminosa que a nosso ver é uma só: racha de veículos com morte.
Andou mal o legislador nessa
forma de legislar, porque poderia muito bem ter usado a técnica de criação de
tipos penais complexos (que são aqueles em que se fundem em um mesmo tipo penal,
ofensa a dois ou mais bens jurídicos), como o latrocínio.
A maneira como se legislou sobre
o tema, demonstra uma total ignorância de certos institutos do Direito Penal,
de há muito sedimentados na lei, na doutrina e na jurisprudência, como a regra
do "non bis in idem" e o principio da consunção.
O absurdo é tão grande, que seria o
mesmo que o legislador resolver punir um homicida pelos golpes de faca que
desfere na vítima e mais o homicídio que causou com tais golpes.
Evidentemente que fazer racha e
matar alguém nesse racha de veículos, tudo se subsume numa única conduta
criminosa, que deveria, então, ter sido prevista em um tipo penal único, com
a pena mais elevada que a prevista no artigo 308.
Mas a nossa confusão mental
segue, ao lermos o parágrafo 2o, do mesmo artigo:
"§ 2o
Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as
circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o
risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5
(cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.”
(NR)
E indagamos
seriamente se é mesmo possível alguém dirigir fazendo racha e não assumir, pelo
menos, o risco da sua conduta. E quais seriam as circunstâncias que fariam
presumir que o agente não quis, nem assumiu o risco, ao dirigir fazendo racha.
Voltando à distinção
clássica entre dolo eventual e culpa consciente, temos o dolo eventual quando
um agente diz a si mesmo, mentalmente, "se ocorrer morte, para mim pouco
importa"; e temos culpa consciente, quando o agente diz a si mesmo,
mentalmente, "se houver possibilidade de morte, acredito que serei capaz
de evitá-la". Já o dolo direto é o querer um resultado.
Pensamos que o novo
parágrafo do artigo 308 trará grandes desafios para nossos julgadores e
intérpretes das leis penais. O desafio é analisar quando dois motoristas,
fazendo racha de veículos, não querem, nem assumem o risco de um deles morrer.
É fazer justamente aquilo que o julgado acima (STF) acentuou a dificuldade:
adentrar a psique do agente. Pois não acreditamos que circunstâncias externas venham demonstrar o oposto.
Ou seja, nossos
legisladores ignoraram por completo decisões inclusive de nossa mais alta
Corte, o STF, nas quais já se laborou na tese do homicídio com assunção de
risco nessa hipótese.
Eis, então, o desafio
que tal mudança propõe: ignorar tudo que se pensou sobre o assunto, em longas e
cansativas leituras e meditações, para se ajustar uma determinada conduta de
uma forma diferente da que se vinha fazendo.
A nosso ver, caros
estudantes, será declinar do bom senso, para se adotar o absurdo.
===
Comentário um dia após o texto acima:
Após uma noite de sono, despertei com a ideia de que o que pretenderam foi criar um crime preterdoloso. O racha de veículos é doloso (óbvio), já o resultado morte, que o legislador agora vem dizer que não é desejado, culposo. Na verdade, usaram texto semelhante ao do artigo 129, p. 3o. CP. Mas ressalvaram que esse crime pode continuar sendo doloso. O resultado prático disso, é que o MP deverá denunciar esses casos como homicídio doloso e a defesa deverá brigar até a última instância, pela tese do crime preterdoloso, o que deve fazer com que os casos se arrastem, indefinidos e sem solução, por muitos anos. Até que o STF, de novo, encontre uma fórmula mágica de imaginar racha de veículos com morte, que seja culposo... Distinguindo-o de racha de veículos que seja doloso.
===
Outra questão interessante: o Professor Luiz Flávio Gomes entendeu que o tipo penal do novo artigo 302, parágrafo 2o, CBT:
Confunde-se com o novo tipo legal do artigo 308 acima. Pois ambas as condutas dizem respeito à disputa de rachas em pistas de corrida ou vias públicas.
Comentário um dia após o texto acima:
Após uma noite de sono, despertei com a ideia de que o que pretenderam foi criar um crime preterdoloso. O racha de veículos é doloso (óbvio), já o resultado morte, que o legislador agora vem dizer que não é desejado, culposo. Na verdade, usaram texto semelhante ao do artigo 129, p. 3o. CP. Mas ressalvaram que esse crime pode continuar sendo doloso. O resultado prático disso, é que o MP deverá denunciar esses casos como homicídio doloso e a defesa deverá brigar até a última instância, pela tese do crime preterdoloso, o que deve fazer com que os casos se arrastem, indefinidos e sem solução, por muitos anos. Até que o STF, de novo, encontre uma fórmula mágica de imaginar racha de veículos com morte, que seja culposo... Distinguindo-o de racha de veículos que seja doloso.
===
Outra questão interessante: o Professor Luiz Flávio Gomes entendeu que o tipo penal do novo artigo 302, parágrafo 2o, CBT:
§ 2o. Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora
alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que
determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição
automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de
veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:
Confunde-se com o novo tipo legal do artigo 308 acima. Pois ambas as condutas dizem respeito à disputa de rachas em pistas de corrida ou vias públicas.
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