Formulei a seguinte questão, em uma recente avaliação de direito penal, para meus alunos:
"4 – Pietro, 24 anos, hemofílico, leva um tiro na perna, disparado por Setúbal, 34 anos, seu desafeto. Por ser hemofílico, Pietro morre. Contudo, se não tivesse essa doença, não morreria. Que tipo de concausa é essa? Quais as soluções que a doutrina dá para esse caso? (1.0 ponto);".
Conforme aula ministrada e guia de aula, trata-se de uma concausa relativamente independente preexistente. E, ainda conforme guia de aula, se Pietro soubesse que a vítima era hemofílica, antes de efetuar o disparo, deveria responder por homicídio doloso consumado. Caso não soubesse, deveria responder por lesão corporal seguida de morte.
Veja-se o que consta do módulo dois de direito penal parte geral (guia de aula disponibilizada aos alunos):
"B1- Causa preexistente relativamente independente: A, golpeia B, hemofílico, que vem a falecer em virtude dos ferimentos devido a sua condição física. Nesse caso, duas hipóteses podem ocorrer: A, sabe que B é hemofílico e deseja a morte deste, nesse caso deverá responder pelo homicídio a título de dolo; ou A não sabe dessa condição de B, e B vem a morrer após o ferimento, que não seria letal em uma pessoa sã, nesse caso A deverá responder por lesão corporal seguida de morte, art. 129, parágrafo 3º, CP.".
Contudo, um estudante respondeu de maneira diversa a questão: segundo o aluno, se o agente (no caso, Pietro) não soubesse da condição de hemofilia de Setúbal, deveria responder por tentativa de homicídio.
Considerei errada a resposta do estudante, porque avaliei ser absurdo que se defenda uma tentativa de homicídio de vítima morta, que foi efetivamente atingida pelo agente; sobretudo, se a vítima foi agredida por um tiro de revólver. Aliás, só se conhece um caso desses no direito penal (de vítima morta e agente respondendo por tentativa de homicídio), que é o da autoria colateral e incerta, a saber, A e B atiram em C, mas nenhum dos agentes sabe da intenção um do outro, sendo que apenas um projétil atingiu o corpo da vítima, que morreu; A e B jogam suas armas no mar (um não sabe da intenção do outro); diz a doutrina que nesse caso, não sendo possível precisar de qual arma partiu o projétil que matou C, e, sendo certo que pelo menos um dos agentes praticou apenas tentativa de homicídio, a solução é punir ambos por tentativa, pois pelo menos tentativa de homicídio praticaram.
A posição que adotei, no caso do hemofílico, é, em parte, a do penalista Rogério Greco, que doutrina:
"Tomemos aquele exemplo clássico da vítima hemofílica. Suponhamos que João, querendo causar a morte de Paulo e sabendo de sua condição de hemofílico, nele desfira um golpe de faca. O golpe, embora recebido numa região não letal, conjugado com a particular condição fisiológica da vítima, faz com que esta não suporte e venha a falecer. Nesse exemplo, duas situações podem ocorrer: se o agente queria a morte da vítima, atuando com animus necandi, responderá pelo resultado morte a título de homicídio doloso; se, embora sabendo da condição de hemofílico, o agente só almeja causar lesões na vítima, agindo tão somente com animus laedendi, responderá por lesão corporal seguida de morte (parágrafo 3o. do art. 129 do CP), aplicando-se, aqui, a regra contida no art. 19 do Código Penal, uma vez que o resultado morte encontrava-se no seu campo de previsibilidade, embora por ele não tenha sido querido ou assumido.". (Curso de Direito Penal Parte Geral, Volume 1, Rogério Greco, Editora Impetus, 2007, página 225).
Concordo com v. doutrina. Apenas questiono como será possível o agente criminoso, mesmo sabendo da condição de hemofílico, da vítima, desferir-lhe golpe de faca, sem desejar que a vítima morra, ou pelo menos, sem assumir o risco de sua conduta, o que levaria ao dolo eventual para o homicídio, ou seja, parece-me inverossímil que uma pessoa desfira facada em um hemofílico e não assuma o risco de matá-lo, se sabe de antemão da sua doença.
Mas continua Rogério Greco, em sua doutrina:
"Contudo, se o agente desconhecia a hemofilia da vítima, não poderá ser responsabilizado pelo resultado morte, uma vez que estaria sendo responsabilizado objetivamente. Se queria ferir a vítima, agredindo-a com um soco na região do tórax e esta, em razão de sua particular condição de hemofilia, vem a falecer devido à eclosão de um processo interno de hemorragia, o agente só poderá ser responsabilizado pelo delito de lesões corporais simples.". (Op. cit, pág. 225).
Memorize isso: para Rogério Greco, se o agente não sabe que a vítima é hemofílica, agredindo-a com um soco na região do tórax, a vítima morre, o agente só poderá responder por LESÕES CORPORAIS SIMPLES!
Memorize isso: para Rogério Greco, se o agente não sabe que a vítima é hemofílica, agredindo-a com um soco na região do tórax, a vítima morre, o agente só poderá responder por LESÕES CORPORAIS SIMPLES!
Aí complicou tudo, não é? Porque voltamos à mesma situação de se punir um agente, por tentativa de homicídio, de vítima morta, caso ele não soubesse que a vítima é hemofílica e caso se usasse, por exemplo, uma arma e não uma faca. E eu ainda questiono aquele outro clássico exemplo, do agente que dá um soco na vítima, sem pretender matá-la, a vítima cai, bate a cabeça numa pedra e morre. Ora, nesse outro exemplo, a doutrina sempre menciona que há lesão corporal seguida de morte. Por que, então, na situação da vítima hemofílica, mesmo resultando na vítima morta, o agente vai responder por lesões corporais simples? O acaso (da vítima cair de mal jeito) tem mais peso do que a moléstia da vítima?
Parece-me um contrassenso tal solução. Se concordo com a primeira parte da doutrina de Rogério Greco, não concordo com a segunda.
Mas fui em busca de outras opiniões doutrinárias para o famoso "caso" da vítima hemofílica - o qual mesmo sendo raro na prática, dá azo a tantas opiniões doutrinárias diferentes:
- Damásio de Jesus sempre defendeu que o agente responderá pelo resultado morte (não diz se tentado ou consumado, presumo que seja consumado) nem diz se doloso ou culposo, vide Direito Penal Volume 1, Damásio de Jesus, Saraiva,. 34a edição, 2013,, página 295 / 24a. edição, 2001, página 255. Ou seja, esse penalista nem distingue, como o faz Rogério Greco, o "saber" ou "não saber" que a vítima é hemofílica;
- Magalhães Noronha e Feu Rosa, não tratam da questão do hemofílico, razão pela qual nem citarei aqui;
- Mirabete doutrina de forma semelhante ao Damásio: "É inegável o nexo causal na morte: por hemorragia de uma lesão leve por ser vítima hemofílica." (Manual de Direito Penal, volume I, 25a. ed. Atlas, 2009, página 97);
Memorize isso: Damásio e Mirabete (este, saudoso), ambos concordam que o agente responderá pelo resultado morte, mas tentado? Consumado? Preterdoloso?
Memorize isso: Damásio e Mirabete (este, saudoso), ambos concordam que o agente responderá pelo resultado morte, mas tentado? Consumado? Preterdoloso?
- André Estefam cita em sua obra o "caso" do hemofílico, mas alerta que é necessário, para se auferir a responsabilidade do agente, saber da sua intenção. Há nexo causal entre conduta e resultado, mas a imputação do resultado ao agente, dependerá de um elemento de caráter subjetivo, "consistente em se verificar se a causa era por ele conhecida (o que conduzirá à responsabilização a título de dolo), ou, ao menos, previsível (indicativo de culpa)". Contudo, esse respeitável penalista alerta que o ataque ao hemofílico precisa ser leve ("Note-se que, nesse exemplo, pressupõe-se que o sujeito tenha efetuado um golpe leve no ofendido, que não produziria a morte de uma pessoa saudável"). (Vide: Direito Penal Parte Geral, Volume 1, André Estefam, Saraiva, 2010, página 191);
- Cezar Roberto Bitencourt trata da questão da vítima hemofílica, cita que há uma espécie de "soma de forças" para que o resultado ocorra, e que "hemofilia que se soma à conduta do sujeito, e ambas, juntas, vão determinar o evento.", mas lamentavelmente, não explica como fica a situação do agente, se responde por homicídio consumado ou tentado. (vide: Tratado de Direito Penal, Volume 1, 14a Edição, Saraiva, página 261);
- Fernando Capez, após citar o "caso", do hemofílico como sendo preexistente e relativamente independente, não se exime de dar a sua opinião, doutrinando: "Consequência das causas relativamente independentes: conforme acabamos de dizer, aplicando-se o critério da eliminação hipotética, podemos afirmar que nenhuma causa relativamente independente tem o condão de romper o nexo causal. Experimente retirar da cadeia de causalidade o corte no braço do hemofílico, o tiro gerador do susto homicida e o atentado que colocou a infortunada vítima na ambulância. O resultado teria ocorrido? Evidentemente, não. Essas causas, portanto, ao contrário das absolutamente independentes, mantêm íntegra a relação causal entre conduta e resultado. No caso das causas preexistentes e concomitantes, como existe nexo causal, o agente responderá pelo resultado, a menos que não tenha concorrido para ele com dolo ou culpa. Sim, porque dizer que existe nexo causal não dispensa a presença do elemento psicológico (dolo) ou normativo (culpa) da conduta, sem os quais o fato será atípico." (Curso de Direito Penal Parte Geral Volume 1, Fernando Capez, 15. ed. 2011, Saraiva, páginas 189 - 190);
- Paulo Queiroz defende uma interessante opinião. Após mencionar que Damásio está errado, ao afirmar que as causas preexistentes e concomitantes, quando relativamente independentes, não excluem o resultado, o citado autor afirma que, "ainda que se trate de causa preexistente ou concomitante, se ela produziu, exclusivamente, o resultado, ao contrário do que afirma Damásio, não se poderá imputá-la ao agente, simplesmente porque a sua conduta não foi condição sem a qual não se produziu o resultado, já que este teria ocorrido ainda que ele nada fizesse" (Direito Penal Parte Geral, Saraiva, 2a. edição, 2005, página 165). Após esse esclarecimento, cita Paulo Queiroz o exemplo da vítima hemofílica e conclui que se a morte do hemofílico, deveu-se, unicamente, à sua doença, agravada pelo golpe, leve e em parte não fatal do seu corpo, o agente não deve responder pela morte; mas se, ao contrário, o golpe trouxe a morte, pelo agravamento do quadro do hemofílico, o agente responderá pela morte. Ou seja, esse autor deixa a questão pro perito (médico) responder e eu chego a ter pena desse perito. A pergunta é: um médico será capaz de dar uma resposta exata a respeito disso? Pois tendo de emitir um laudo sobre uma situação que nem essa, vendo a vítima morta, hemofílica, com base em quê, poderá precisar se a mesma morreu unicamente devido à doença ou se o golpe fez com que houvesse um agravamento da doença da vítima e sua morte? Na minha opinião, a visão do Professor Queiroz é que está equivocada, pois se tínhamos uma vítima hemofílica viva, e, depois do golpe do agente, temo-la morta, só temos uma única resposta, a de que o golpe fez agravar a hemofilia.
- Guilherme de Souza Nucci, trata exatamente da hipótese que lancei na prova, sendo que doutrina o seguinte: "Assim, se a vítima é hemofílica (outro exemplo tradicional de concausa preexistente) e sofre um tiro, que produz hemorragia incontrolável, causando-lhe a morte, o agente do disparo responde por homicídio consumado. No mesmo prisma: WALTER VIEIRA DO NASCIMENTO, A embriaguez e outras questões penais (doutrina – legislação – jurisprudência), p. 10. Em sentido contrário, torna-se importante mencionar a posição de PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR: 'Embora o § 1.º se refira somente às causas supervenientes, entendemos que também as causas antecedentes ou intercorrentes que tenham sido por si sós suficientes (em sentido relativo) para produzir o evento prestam-se à exclusão do vínculo causal penalmente relevante. Trata-se de uma analogia in bonam partem, admissível em direito penal” (Comentários aos crimes do novo Código Nacional de Trânsito, p. 12).'". (Código Penal Comentado, Guilherme de Souza Nucci, 14.ed. Gen Editora, 2014 págs. 169/170).
Farei uma pausa aqui, para um resumo: de todos os penalistas que postei, temos Damásio, Capez e Nucci que entendem que o agente responde por crime consumado contra o hemofílico, doloso ou culposo. Isso porque deram causa e porque as causas preexistentes relativamente independentes, não rompem o nexo causal. Mas se Damásio, Estefam e Capez, não dizem por qual crime deve responder o agente (porque dependerá da intenção do agente), Nucci defende que responderá por homicídio consumado.
Memorize isso: o penalista Guilherme Nucci defende que o autor de ferimento a bala, em hemofílico, que vem a morrer em virtude disso, responderá por homicídio consumado.
Até aqui, à exceção de Nucci, contemplamos autores que indicam seja avaliada a intenção do agente, no caso concreto, o que sempre me causou estranheza. É como se fosse simples adentrar a mente do réu e saber exatamente se ele tinha desejo de matar ou de lesionar a vítima. Quando sei muito bem que ninguém é capaz de fazer isso. Nem os psicólogos e psiquiatras, que entrevistam seus pacientes por horas e horas. Quando muito, os atores dos dramas do judiciário são apenas capazes de sustentar, em seus arrazoados, aquilo que eles acham que realmente aconteceu, aquilo que eles acham que o réu pensou antes de agir.
Há a opinião doutrinária de Paulo José da Costa Jr., que entende contrariamente, mas esse autor sempre foi um notório (e notável) defensor de acusados de crimes, logo, é natural que defendesse exatamente outro ponto de vista.
Eu prometi ao meu aluno, que se eu encontrasse uma doutrina que amparasse sua tese, reveria sua nota.
Pois bem, citarei duas doutrinas que considerei as mais próximas da opinião do estudante:
- Flávio Monteiro de Barros: fiquei espantado, porque quando li o livro do ilustre Professor Flávio, li doutrina que inclusive mencionei na guia de aula. Ou seja, em seu livro, Direito Penal Parte Geral v. 1, 6a. Edição, Saraiva, 2008, página 180, FMB defendeu outra coisa. Após mencionar o mesmo exemplo do diabético (abaixo) e mais um de causa concomitante relativamente independente ("João fere José numa noite extremamente fria, vindo este a morrer por um processo de congelamento, auxiliado pela hemorragia que reduziu as possibilidades de resistência do organismo"), escreve o autor: "No tocante a essas duas causas relativamente independentes, o agente responde pelo resultado, porquanto suprimindo in mente a sua conduta a morte não teria ocorrido como ocorreu.". (negrito meu).
Ou seja, até aqui, FMB dizia o mesmo que Damásio, Capez e Mirabete: o de que o agente "responderá pelo resultado". Mas não sabemos como se dará isso. Responderá por homicídio? Por lesão corporal? Dolosos ou por lesão seguida de morte? Crime tentado ou consumado? Ficamos naquele limbo de imaginar por qual crime o agente responderá.
Contudo, lendo suas atuais apostilas, do Curso Preparatório para Concurso de Juiz Federal, encontro o seguinte: "Exemplo de causa preexistente relativamente independente em relação à conduta do agente: Tício fere Caio (diabético), que vem a falecer em virtude da diabete agravada pelos ferimentos". Ora, como se vê, o autor não cita o exemplo da hemofilia, mas cita um exemplo similar. E após mencionar que esse evento não rompe o nexo causal, pois não inaugurou evento causal autônomo, fora da conduta do agente, arremata Flávio Monteiro de Barros: "Nos exemplos ministrados acima, o agente responde apenas pelos atos anteriores à ocorrência do resultado. Ser-lhe-á imputado o delito de homicídio tentado, se agiu com animus necandi, e o delito de lesões corporais , se atuou com animus laedendi.". (Curso Preparatório FMB - Juiz Federal, 2014).
Fico pensando se não será um erro de digitação. Mas o fato é que FMB passou recentemente a defender o seguinte: Pedro produziu ferimento em Paulo, diabético (ou hemofílico). Pedro tinha intenção de matar Paulo. Mas não mataria, com o golpe que deu em Paulo, uma pessoa sem a doença que Paulo tinha, diabetes. Paulo morreu. Mesmo nesse caso, Pedro responderá por tentativa de homicídio.
Consegue conceber isso? Temos: a) intenção de matar por parte do agente; b) temos um ferimento produzido pelo agente na vítima; c) temos a vítima morta, mas ainda assim o agente responderá por tentativa de homicídio, simplesmente porque a condição especialíssima do organismo da vítima, não propiciaria um homicídio consumado, tivesse o agente praticado o mesmo ferimento em vítima sadia.
Eu não consigo aceitar essa orientação doutrinária, apesar de toda cultura do seu defensor.
Mas o Professor FMB não segue sozinho em sua opinião:
- Rogério Sanches Cunha, doutrina sobre o tema: "(i) Preexistente: a causa efetiva (elemento propulsor que se conjuga para produzir o resultado) é anterior a causa concorrente. Exemplo: JOÃO, portador de hemofilia, é vítima de um golpe de faca executado por ANTÔNIO. O ataque para matar, isoladamente, em razão da sede da natureza da lesão, não geraria a morte da vítima que, entretanto, tendo dificuldade de estancar o sangue dos ferimentos, acaba morrendo. ANTONIO, responsável pelo ataque (com intenção de matar), responderá por homicídio consumado. Eliminando seu comportamento do processo causal, JOÃO não morreria." (Manual de Direito Penal Parte Geral, Volume Único, Editora JusPODIVM, 2013, página 215). Até aqui, parece que Sanches comunga do pensamento de André Estefam, contudo, Rogério Sanches cita, em nota de rodapé, na mesma página 215, o seguinte: "Para evitar a responsabilidade objetiva, o Direito Penal moderno corrige a conclusão a que se chega no exemplo acima, de maneira que somente seria possível imputar homicídio consumado ao agente caso ele soubesse da condição de saúde da vítima. Do contrário, haveria tentativa de homicídio.". (grifo meu).
Nota-se uma sutil diferença entre a opinião de FMB e a de Rogério Sanches. Este entende que o agente deve responder por tentativa de homicídio porque não sabia da condição especial da vítima. Já aquele, defende, se eu entendi corretamente, que mesmo sabendo da condição especial da vítima, se o ferimento não mataria uma pessoa sadia, haverá ainda assim tentativa de homicídio doloso, o que me parece um equívoco de FMB ou erro de digitação.
E temos, senhores, a possibilidade de a defesa, sustentar no Brasil, a tese da tentativa de homicídio, a favor de agente criminoso que atuou contra a vida de hemofílico, que causou-lhe a morte.
E eu fico pensando: como será esse júri? Será que esses autores, Promotores de Justiça alguns, vão mesmo sustentar essa tese, caso tenham em suas mãos a condução de um caso semelhante? A tese da tentativa de homicídio, de vítima hemofílica que morreu em virtude do ferimento provocado pelo agente?
Mais lógico seria seguir, talvez, a antiga orientação do Professor Damásio de Jesus, adotada nas primeiras edições do seu livro (e não mencionada nas novas edições), sustentando que vítima hemofílica não poderia pagar pelo fato de ser hemofílica, senão chegaríamos ao cúmulo de culpar a vítima por ter essa doença e não o réu, por tê-la assassinado.
Se me permitem um chiste, parece aquela situação da torta mordida e do autor da mordida que não assume o que fez: temos uma torta mordida, temos o autor da mordida (que, à evidência, queria morder a torta, tanto que a mordeu), mas por culpa da torta ser irresistível, o autor da mordida deve responder por tentativa de morder a torta, que ele efetivamente mordeu! (rs).
Eu ainda fico com a solução da lesão corporal seguida de morte. Parece-me ser a melhor orientação. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Meio termo e bom senso.
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Após escrever o pequeno artigo acima, encontrei doutrina mais segura, do Professor Cristiano Rodrigues. Não é à-toa que venho adotando suas obras, sem hesitação, na minha cátedra. Sobre o "caso" do hemofílico, doutrina o festejado autor:
"Para a maioria da doutrina nacional o conhecimento da condição relativamente independente preexistente é necessário para se imputar ao agente dolosamente o resultado produzido em face de sua conduta e, ainda, que o não atendimento a esse requisito violaria o princípio da culpabilidade, configurando a adoção de uma responsabilidade penal objetiva.
O professor Rogério Greco (2006), ilustrando a ocorrência de uma causa preexistente relativamente independente e o referido posicionamento, afirma:
Tomemos aquele exemplo clássico da vítima hemofílica. (...) Contudo, se o agente desconhecia a hemofilia da vítima não poderá ser responsabilizado pelo resultado morte, uma vez que estaria sendo responsabilizado objetivamente.
Parece-nos que nem sempre o desconhecimento da condição preexistente afastará a existência do dolo na conduta do agente, já que esse está vinculado à análise da conduta típica, sendo seu elemento subjetivo quanto a produção de um resultado. De acordo com a situação concreta, muitas vezes a efetiva presença de uma finalidade (dolo) independe absolutamente de o agente conhecer, ou não, certa condição preexistente que, em conjunto com sua conduta, tenha dado causa a um resultado.
É inegável que em certas situações o desconhecimento da condição preexistente poderá interferir no juízo de tipicidade da conduta, gerando ausência de dolo na conduta do autor, e assim impedir a imputação do resultado por ele causado sob pena de uma responsabilidade objetiva. Contudo, isso de forma alguma significa que, necessariamente e em todas as hipóteses, a ausência de conhecimento da concausa preexistente irá gerar estas consequências.
No que tange à responsabilidade penal do agente quanto ao resultado causado por sua conduta, vejamos alguns exemplos concretos que demonstram a diferença inquestionável dos efeitos do desconhecimento das condições relativamente independentes em cada caso:
No clássico exemplo da hemofilia: determinado agente dispara arma de fogo contra um desafeto (que é hemofílico), ou mesmo o golpeia no tórax com uma faca, com ânimo de matá-lo. Este morre em função de hemorragia aguda produto da sua condição de hemofílico preexistente, já que o ataque não atingiu órgão vital, embora tenha produzido uma grave lesão.
Neste exemplo pode-se perceber que numa análise pré-típica, com base no método da eliminação hipotética e de acordo com a teoria da conditio sine qua non, a conduta do agente (facada ou tiro) pode ser considerada causa do resultado por ser condição essencial para sua produção, já que eliminando-a este deixaria de ocorrer, inegavelmente a hemofilia também foi condição essencial para a morte.
Porém, passando para uma segunda etapa de análise, em que deve ser apurado o elemento subjetivo (dolo) da conduta do agente, pode-se perceber que este praticou a ação (golpe de faca/disparo da arma) com evidente e inegável animus necandi, ou seja, dolo de matar seu desafeto, e isto obviamente independe absolutamente de ele conhecer, ou não, a condição de hemofílico da vítima.
Portanto, podemos concluir que nem sempre o desconhecimento da situação preexistente relativamente independente irá afetar o dolo na conduta do agente e gerar situação de responsabilidade objetiva quanto a imputação do resultado. A relação de causalidade é uma análise pré-típica, enquanto o dolo, elemento subjetivo do Tipo, deve ser apurado em face do caso concreto de acordo com a conduta do agente e sua finalidade ao agir, o que muitas vezes fica evidente independentemente do conhecimento ou não de uma concausa preexistente que tenha concorrido para a produção do resultado. (Direito Penal Parte Geral I, Cristiano Rodrigues, Saraiva 2012, Coleção Saberes do Direito, Volume 4, páginas 78-79).
O autor doutrina sobre esse tema nas páginas 78 a 80, da obra supra citada, sendo que citei apenas parte de tudo que o mesmo escreveu. Mas concordo com seu raciocínio: o desconhecimento da preexistência da concausa, que colabora para o evento causal, não pode, por si só, afastar sempre o dolo, se a conduta do agente, isoladamente, já denota intenção criminosa que fundamente denúncia pelo crime consumado.
Aliás, na análise do dolo, devemos auferir dolo de primeiro grau e dolo de segundo grau, sendo este referente aos meios de que se utiliza o agente para o cometimento do crime, sendo que essa avaliação ocorre ANTES de se contemplar a condição da vítima.
Uma coisa, como bem cita Cristiano Rodrigues, é o agente desferir um soco na vítima, sem saber que a mesma tinha um aneurisma, que vem a se romper. Outra coisa é pegar um revólver e com animus necandi, disparar contra a perna da vítima e esta vem a morrer, por conta de uma hemofilia, que o agente não tinha ciência. No primeiro caso, à evidência, não houve desejo de matar. No segundo, não precisamos analisar a saúde da vítima, para avaliar se houve dolo de homicídio.
Não se pode, sob a alegação de que se está a evitar suposta punibilidade meramente objetiva, acoimar o absurdo, de se punir por crime tentado, um agente que queria matar a vítima, que usou meios adequados ao dolo de segundo grau, contudo a vítima veio à óbito devido ao agravamento de uma moléstia pré-existente.
A adoção do finalismo de Hans Welzel, se por um lado tornou o direito penal mais lógico, no que pertine ao nexo causal, parece que engessou a evolução da tipicidade. O que se contesta é esse procedimento de se perquirir a intenção do agente, mesmo quando esta jaz exsurge fortemente de seus atos, quando sabemos que: a) nem sempre o agente manifesta exatamente qual foi a sua intenção durante a realização do crime; b) se orientado juridicamente, mente a respeito, para se beneficiar; c) essa análise sobre a intenção do agente, acaba por ser um juízo de quem julga, sobre a ação ou omissão criminosa do mesmo.
Devemos e podemos enriquecer o elemento tipicidade, estabelecendo novos parâmetros que relativizem a análise da intenção do sujeito, algo que cada dia mais se parece com uma visão por parte do outro sobre a ação do sujeito ativo, tornando mais lógico o enquadramento penal. Sendo, talvez, a imputação objetiva um desses nem tão novos, parâmetros.
Inclusive, talvez se evolua para o funcionalismo jurídico de Roxin, onde essa análise do fato típico não prescinde da imputação objetiva e a responsabilidade penal atende muito mais à necessidade de prevenção social, do que a busca de um enquadramento penal que satisfaça uma quimérica análise da intenção réu.
*Atualizado em 18.10.2015.
Muito bom professor, parabéns pela análise.
ResponderExcluirDe fato, uma análise ímpar sobre a celeuma jurídica. Ao me deparar com as soluções propostas por alguns doutrinadores, cheguei mesmo a questionar meus próprios conhecimentos. Seu artigo foi muito elucidativo. Parabéns.
ResponderExcluirObrigado. Aproveitando seu comentário, um colega advogado me indagou qual a importância de debater um caso tão raro, tão improvável de acontecer, como esse... Responderei aqui: o direito penal usa de casos hipotéticos e raros para solidificar a sua teoria. Parte-se da ideia de que se enfrentamos os casos mais complexos e raros, os casos mais simples serão analisados mais facilmente.
ExcluirBom dia!
ResponderExcluirLi o seu tópico, achei excelente. Sou aluno do 2 semestre de Direito, tivemos uma questão na nossa prova bastante similar as expostas acima. Se possível gostaria que analisasse a questão e nos esclarecesse a resposta, pois houve muita discrepância nas opiniões. Desde já agradecemos.
Pergunta: Wallace, hemofílico, foi atingido por um golpe de faca em uma região não letal do corpo. Júlio, autor da facada, que não tinha dolo de matar, mas sabia da condição de saúde específica de Wallace, sai da cena do crime sem desferir outros golpes, estando Wallace ainda vivo. No entanto, algumas horas depois Wallace morre, pois apesar de a lesão ser em local não letal, sua condição fisiológica agravou o seu estado de saúde. Acerca do estudo de causalidade, a que responde Júlio?
O fato de Wallace ser hemofílico é uma causa relativamente independente preexistente, e Júlio não deve responder por homicídio culposo, mas, sim, por lesão corporal seguida de morte.
ExcluirPrezado, o que complica a questão é esse "ausente o dolo de matar", junto com "sabia da condição da vítima", pois como seria isso? Não estaria presente o dolo eventual? Mas, da forma como a questão foi formulada, mais seguro é responder que houve lesão seguida de morte. Espero ter ajudado.
ResponderExcluirInteressante a análise, gostaria de saber se este resumo de toda essa análise está correto: intenção de matar a vítima hemofílica + saber da doença: homicídio consumado. Intenção de matar a vítima + não saber da doença: lesão corporal seguida de morte para algumas doutrinas e homicídio tentado para outras. Intenção de lesão corporal + saber da doença: lesão corporal seguida de morte. Intenção de lesão corporal + não saber da doença: lesão corporal simples.
ResponderExcluirPrezado, até a data em que redigi este artigo (se podemos chamar como tal, está mais para um estudo comparativo), estão corretas as análises, veja que inclusive cito as doutrinas na fonte. Mas de lá pra cá, é possível que as novas edições de tais obras tenham sido alteradas. Não descarto que os autores tenham lido esse meu estudo e tenham buscado um posicionamento mais claro ou até outro posicionamento. Logo, sugiro que busque as novas edições das obras que citei e veja o que mudou ou se mudou.
ExcluirProfessor, no caso de alguém com intenção de causar lesões leves desfere tapa no rosto em que a vítima tinha um coágulo que se rompe causando-lhe a morte, o agente responde por lesões leves ou lesão corporal seguida de morte? obrigado.
ResponderExcluirPrezado Diogo,
ExcluirPor mais estranho que isso possa parecer, defendo que o agente deva responder por lesão leve, exceto se o agente sabia que a vítima tinha esse coágulo. Porque qualquer resposta diferente leva a uma odiosa responsabilização objetiva (o sujeito paga pelo resultado e não pelo seu dolo). Na minha opinião essa situação por você mencionada NÃO é similar aquela do agente que dá um soco na vítima, a vítima cai, bate a cabeça numa pedra e morre. Porque nessa hipótese que você citou, o coágulo já é preexistente.
Esclareço que Damásio de Jesus já defendeu que o agente deve responder pelo resultado mais grave, em hipótese semelhante. Mas fica difícil concordar com o mesmo.
Excelente artigo!
ResponderExcluirObrigado, sr. Alexandre.
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