Novo artigo de autoria do Professor Luiz Flávio Gomes sobre o tratamento da embriaguez no Código Brasileiro de Trânsito:
Juízes absolvem motoristas
bêbados (por causa da nova lei seca)
Como provar isso?
“Com nova lei
seca, juízes absolvem motoristas flagrados no bafômetro; Lei
endureceu multa e aumentou prisões, mas ainda libera embriagados. Associação
critica entendimento e pede tolerância zero a álcool no volante”.
O que
mudou com a Lei 12.760/12
(comentada por nós no nosso livro Nova lei seca: Saraiva, 2013)? Antes,
bastava a concentração de 6 decigramas de álcool no sangue para a
caracterização do crime de embriaguez ao volante; agora a lei exige essa
concentração de sangue mais “alteração da capacidade psicomotora”.
Tecnicamente
falando: antes o crime era de perigo abstrato presumido (presume-se o perigo
diante da embriaguez); agora é de perigo abstrato de perigosidade real, ou
seja, além da embriaguez, é preciso provar no processo que o motorista estava
com sua capacidade psicomotora alterada.
Como
provar isso? Para não ficarmos no subjetivismo, basta uma conduta objetiva
concreta reveladora da alteração dessa capacidade. Por exemplo: dirigir em
ziguezague, na contramão, passar o sinal vermelho, subir calçada, bater numa
árvore, dar cavalo-de-pau etc. Basta isso.
Não é
preciso nenhuma vítima concreta. Não se trata de crime de perigo concreto. Não
é preciso gerar nenhum acidente. Não é preciso lesar nenhuma outra pessoa. Não
é preciso ter gente no local dos fatos na hora da condução perigosa.
Entre a
figura do perigo abstrato presumido (que é inconstitucional) e o perigo
concreto (que exige vítima concreta) existe o meio termo, que é o perigo
abstrato de perigosidade real. A confusão generalizada na mídia e na cabeça do
povo está ocorrendo por desconhecimento dessa técnica do direito penal
(explicada no nosso livro). De outro lado, para a mídia e para o povo a única
punição que é entendida como tal é a prisão. Tudo que é diferente da prisão não
seria punição. Grave erro da mídia e do povo.
Por que o
legislador passou a exigir a alteração da capacidade psicomotora? Para
diferenciar o crime do art. 306 da infração administrativa do art. 165 do CTB.
Para esta, basta dirigir embriagado (basta a prova da embriaguez). Para aquele
é preciso prova da embriaguez + prova da alteração da capacidade psicomotora.
A
legislação penal é dura? Uma das 12 mais severas do planeta. Introduziu a tolerância
zero e prevê penas administrativas e penais duríssimas. Nenhuma quantidade de
álcool é permitida (salvo casos irrisórios, decorrentes de enxaguantes bucais,
por exemplo). Nenhum motorista bêbado deveria escapar (se houvesse excelente
fiscalização). Juridicamente nenhum escapa, porque ou está enquadrado na
infração administrativa ou no campo penal.
Qual a
diferença entre eles? A infração administrativa só exige prova da embriaguez e
é punida com multa de quase 2 mil reais, perda da carteira por um ano +
apreensão do veículo. O crime exige prova da embriaguez + prova da alteração da
capacidade psicomotora (dirigir em ziguezague etc.). Pena: todas as citadas,
mais prisão de 6 meses a 3 anos. Para incidir a pena de prisão (que é muito
grave) é preciso que corra um crime. Sem este, as penas são administrativas (e
são duras). A desgraça é que o povo e a mídia entendem como punição
exclusivamente a prisão. Essa é a desgraça. Desgraça lançada no final do século
XVIII e começo do século XIX pelo sistema penal burguês, que começou a mandar
todo proletário para a cadeia. Aí o povo passou a entender que punição é
cadeia. Fora dela, não é punição. Errado entendimento.
As penas
administrativas são duras. Se fossem aplicadas sem trégua, as mortes
diminuiriam. Entre o sistema da pena aplicada de forma certa e infalível
(sistema de Beccaria) e o sistema da pena desproporcional, irracional e
desequilibrada que quase nunca é aplicada, optamos por este último. Daí a
quantidade exorbitante de mortes no Brasil (mais de 43 mil por ano).
Quando as
associações médicas pedem mais eficácia da lei, não estão erradas. É isso que
todo mundo quer (mas que não acontece no nosso país por falta de fiscalização).
Para suprir uma deficiência do Estado (na fiscalização), mídia e povo passam a
exigir a aplicação errada da lei (entendendo que tudo é crime). Nem tudo é
crime. Alguma coisa é administrativo, outra é crime.
Quem está
fazendo essa distinção? Os juízes e tribunais, que são os aplicadores da lei.
Se a lei distinguiu as coisas, os juízes devem seguir a lei. O problema não
está na lei (que escreveu uma das mais duras do planeta). O problema não está
nas penas (que estão entre as mais severas do mundo). O problema não está nos
juízes (que estão aplicando corretamente a lei, distinguindo o que é
administrativo e o que é penal). O gravíssimo problema dos países capitalistas
selvagens que contam com mídia e povo embrutecidos é o seguinte: primeiro o
capitalismo selvagem suga quase tudo e deixa o Estado mínimo quebrado; depois
se exige que ele seja eficiente na fiscalização. Como? Com os recursos escassos
que possui. Onde a mídia e o povo não são embrutecidos, a lei tem império certo
e as mortes diminuem drasticamente.
Os países
de capitalismo evoluído, distributivo e altamente civilizado (Dinamarca,
Suécia, Holanda, Bélgica, Nova Zelândia, Islândia etc.) caracteriza-se pela
excelente taxa de escolaridade dos seus habitantes, pouquíssimos analfabetos
(em razão da educação de qualidade para todos), baixa taxa de violência (menos
de 3 homicídios para cada 100 mil pessoas), baixíssima taxa de mortes no
trânsito (0,17 em média para cada mil veículos e 7,7 pessoas para cada 100 mil
habitantes), excelente posição no IDH (pertence ao grupo do IDH muito elevado),
altíssimo uso das tecnologias, as questões sociais são problemas do Estado e da
sociedade (não da polícia), não apresenta escabrosas e chocantes desigualdades
(possui o indicador GINI médio de 0,31) e os trabalhadores normalmente recebem
média, alta ou altíssima renda per capita. São, ademais, países que contam com
efetivo (nunca absoluto) controle da corrupção.
E o
Brasil, com seu capitalismo selvagem?
Os países
do primeiro grupo (IDH muito elevado = países de capitalismo evoluído e,
normalmente, distributivo e civilizado) matam muito menos no trânsito (média de
0,17 para cada mil veículos ou 7,7 mortes para cada 100 habitantes). Os números
dos grupos seguintes (IDH elevado, médio e baixo) são: 0,81 e 16,2 (segundo
grupo), 2,80 e 18,4 (terceiro grupo) e 22,38 e 20,6 (quarto grupo). O Brasil mata
0,66 para cada mil veículos (perto da média do segundo grupo) e 22 pessoas para
cada 100 mil (no quarto grupo). Em síntese, somos muito violentos. Veja a tabela aqui
Os países
com os melhores IDH´s apresentam baixíssimas taxas de mortes no trânsito, com
exceção dos Estados Unidos, país com a maior frota de veículos do mundo e alta
incidência de violência (quando comparados com essa elite de dez países). Já
entre os países com baixos IDH´s, como Níger, República Democrática do Congo,
Moçambique, Chade, Burquina Faso, Mali, Eritréia, República Centro Africana,
Guiné e Burundi, os piores do índice, as taxa de mortes no trânsito alcançam
números altíssimos, tanto por 100 mil habitantes, como por 1 mil veículos.
O Brasil,
quando comparado com os países do primeiro grupo do IDH, é uma nação
fracassada. A causa principal é o capitalismo selvagem (extrativista e
patrimonialista), que não tem nada a ver com o capitalismo distributivo das
nações avançadas e prósperas como Noruega, Austrália, Holanda, Alemanha, Nova
Zelândia, Irlanda, Suécia, Suíça e Japão etc.
A
prevenção de acidentes e de mortes no trânsito passa por seis eixos: 1)
Educação, 2) Engenharia (das estradas, das ruas e dos carros), 3) Fiscalização,
4) Primeiros socorros, 5) Punição e 6) Consciência cívica e ética do cidadão
(EEF + PPC).
O gigante
inacabado chamado Brasil apresenta sérios problemas no funcionamento de todas
as instituições assim como nos seis eixos citados. O sistema educacional é um
dos mais deploráveis do planeta (últimas colocações no PISA). Grande parcela
dos carros é insegura e as estradas são esburacadas e mal sinalizadas. O Estado
negligencia na fiscalização, os primeiros socorros são demorados e a punição é
muito falha. O brasileiro, no volante de um carro, em muitos casos, é um
bárbaro mal educado, bêbado e sem precaução (o céu, para ele, não é o limite, é
o escopo). Todos os ingredientes da salada mortífera são abundantes. Resultado:
perto de 43 mil mortes por ano. Solução: educação de qualidade em
período integral para todos, mais forte redistribuição de renda (melhor renda
per capta) e rápida diminuição nas desigualdades, começando pelas educacionais
e socioeconômicas.
Publicado
por Luiz
Flávio Gomes
Jurista e
professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto
Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz...
Fonte: http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/116462448/juizes-absolvem-motoristas-bebados-por-causa-da-nova-lei-seca?utm_campaign=newsletter&utm_medium=email&utm_source=newsletter
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