sexta-feira, 23 de maio de 2014

PCC: ser ou não ser, eis a questão...

Quando Shakespeare, em A Tragédia de Hamlet, narrou todo o dilema existencial de Hamlet, quando descobre as urdiduras de seu tio:

“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer.. dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais-herança do homem:
Morrer para dormir… é uma consumação
Que bem merece e desejamos com fervor.
Dormir… Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios. (...)".

Talvez não tivesse imaginado que a frase pudesse ser usada aqui,  ante a angustiante realidade da execução penal brasileira e da denominada organização criminosa PCC - Primeiro Comando da Capital.

Surgida em São Paulo - Capital, na década de 1990, também conhecida como "Organização 15.3.3", teria sido criada por presos da metrópole paulistana e logo ganharia o Brasil todo, pois que o sistema penitenciário do Brasil costuma espalhar presos de outros Estados para os diversos cantos do País, sem qualquer controle ou registro.

O que pretendo questionar neste pequeno artigo, é essa neura das nossas autoridades de reunirem os tais integrantes do PCC em todo e qualquer presídio, simplesmente com base no "ouvi dizer que fulano é do PCC".

Dentro dos presídios brasileiros (e aqui no nosso Estado isso não seria diferente), criou-se o costume de separar por celas ou raios, os presos que seriam supostamente integrantes do PCC (mesmo que nada exista de prova em relação a isso), daqueles que não são.

E quando um preso é classificado como "integrante do PCC", coitado dele! Pois estará marcado eternamente pela pecha de subversivo, perigoso, matador de policiais, capaz das mais variadas atrocidades.

Lembrei-me daquela teoria do etiquetamento, a  LABELLING APPROACH, segundo a qual, os indivíduos encarcerados são inexoravelmente etiquetados e não perdem mais essa etiqueta, até o final de suas vidas, levando inclusive para fora de suas celas, a identidade de criminosos, porque o Estado os rotulou assim.

Mas, analisando o cerne da questão, será que nossas autoridades não imaginaram que ao segregarem homens em locais infectos, pegajosos e úmidos, antros de corrupções e torturas, como são os presídios brasileiros, os homens ali encarcerados não se organizariam de alguma forma?  Ainda que contra quem os segregou?

Quando se encarcera um homem e lhe dão um número, em vez de um  nome, isso nada mais é do que um processo de destruição de sua identidade, como bem Foucault explica em seu grande livro VIGIAR E PUNIR.

Há como que uma infantilização forçada de homens adultos, que são forçados pelo Estado, a andarem de cabeça baixa, mãos pra trás, repetindo indefinidamente "sim, senhor!", pelos cárceres que passarem.

Bem, se despertaram para a necessidade de criar uma organização, ainda que criminosa, é sinal de que a teoria do etiquetamento funcionou às avessas. Os presos, mesmo etiquetados como integrantes de uma organização criminosa, aceitaram essa etiqueta e tornaram-na forte, contra o Estado (rs).

Mesmo dentro de ambientes degradados, sob o cuidado dos vigilantes estatais, os presos foram capazes de se organizar, de estabelecer uma pauta de reivindicações (ainda que algumas reivindicações sejam ilegais) e de engendrar suas ações mesmo fora dos muros que os separam da sociedade.

Quando Erving Goffman e Howard Becker, 1960, identificaram essa chamada Teoria do Etiquetamento, 'labelling approach', penso eu que eles não imaginaram que indivíduos etiquetados, estigmatizados, pudessem usar desse mesmo estigma para transcender  a condição de párias e enxergar virtudes e méritos por pertencerem a esse mesmo grupo que a sociedade estigmatizou. Ou seja, aquilo que era para ser uma vergonha (fazer parte da clientela prisional), passou a ser, no Brasil, com o PCC, motivo de orgulho e resistência contra aquilo que os presos chamam apenas de 'opressão'.

Mas nem era isso que eu queria trazer à reflexão em  meu artigo.

O que eu pretendo é denunciar que muitos presos, novos presos, vêm sendo encarcerados em presídios nacionais, deliberada e erroneamente classificados como integrantes do PCC.

E que quando são presos, acabam sendo encaminhados às celas ou raios onde estão outros presos, estes, sim, integrantes da famigerada organização do PCC. E lá, entre aqueles que o Estado julgou serem "seus iguais", se o novo encarcerado não era integrante do PCC, passará a sê-lo. Isso porque seus colegas de cela se encarregarão de persuadi-lo de que melhor negócio fará se se integrar à organização criminosa.

Vejo, na prática forense penal,  que não há nenhuma cautela, cuidado, pesquisa, análise, para se classificar um preso como integrante do PCC e direcioná-lo para locais, dentro dos presídios nacionais, onde estão outros presos pré - classificados como sendo integrantes do PCC.

Uma pessoa de bom senso diria: - Mas não seria mais inteligente separá-los?

Claro que sim. Uma pessoa inteligente diria: - Para pôr fim a essa organização, o Estado deve oferecer aos seus supostos integrantes, benefícios penais, trabalho, defensores... Tudo com a condição de que eles se separem do PCC.

Deve, inclusive, isolá-los, seja de outros integrantes do PCC, seja de presos que essas pessoas possam influenciar de maneira negativa.

Contudo, não é assim que vem agindo a autoridade carcerária brasileira. Nesse ponto, optaram descaradamente pela adoção da chamada TEORIA DO ETIQUETAMENTO. E estão colhendo e colherão, ainda nesta década, os frutos amargos dessa escolha. A escolha de juntar os etiquetados "INTEGRANTES DO PCC" em antros, onde merecem tratamento mais severo do que o dado a outros presos, onde são sempre os primeiros a serem punidos pelas rebeliões que surgem, onde são sempre os presos sancionados pelo famoso RDD - Regime Disciplinar Diferenciado, onde são sempre os últimos a serem beneficiados por progressão e livramento,  onde as autoridades estão, na verdade, juntando esses indivíduos e forçando os mesmo a se unirem CONTRA O ESTADO DE DIREITO e contra os legitimados para contê-los e reeducá-los.

Governos estaduais deflagram "campanhas contra o PCC", novos homens são presos como supostos "integrantes do PCC". Os quais são interrogados SEM A PRESENÇA DE ADVOGADOS OU DEFENSORES e assumem que são mesmo integrantes do PCC, sendo que depois disso, seus nomes e rostos são estampados, com rapidez, em noticiários, inclusive da internet, em tempo real.

E dali, das delegacias de polícia, são levados aos presídios brasileiros, para celas e raios onde estão outros indivíduos, também classificados como integrantes do PCC. Bem, o que nossas autoridades não percebem é que estão fazendo justamente o fortalecimento dessa organização criminosa, estão agregando e não dissociando. O próprio estado brasileiro, na sua afoiteza e descuido em classificar e juntar esses presos, acaba fazendo o serviço de aumentar suas fileiras. Quando a solução do problema caminha em direção OPOSTA!

O preso, não integrante do PCC, que é definido como tal pelo estado brasileiro e de pronto encarcerado com presos do PCC, vê-se em um legítimo dilema shakespeariano: ser ou não ser. Pois se o próprio estado lhe definiu assim, é como se lhe fechassem as portas a qualquer esperança de recuperação. E quando ele encontra outros presos que se apressam em chamá-lo de "irmão", que convidam-no ao juramento de filiação a essa organização paralela ao Estado, esse preso, que não era integrante do PCC, vê-se tentado a sê-lo, simplesmente porque ante uma porta que se fechou, outra se abre ansiosa por recebê-lo.

O Estado brasileiro vai e prende o indivíduo, coage, joga em seu rosto que ele é membro do PCC (mesmo sem sê-lo), o preso assume ser o que não é, porque está sendo coagido... O Estado brasileiro vai e encarcera esse indíviduo, com muitos outros que passaram pelo mesmo tratamento... Resultado?

Esse novo preso, seja ou não do PCC, vai se unir com outros encarcerados, definidos pelo Estado brasileiro como sendo integrantes do PCC. Pois ele só tem a ganhar com isso! Sim, meus caros... O PCC paga defensores para os presos, que vêm vê-los toda semana. Já o Estado conta com um defensor público, que visita o preso uma vez a cada seis meses. O PCC paga para família do preso se manter aqui fora... O Estado tenta fazer frente com um salário - mínimo a título de auxílio à família do preso, isso se ele tiver contribuído pro INSS.

Parece bem claro que os presos, unidos em um lugar onde só há presos supostamente agregados ao PCC, vão se unir contra o Estado. É o que vem acontecendo, de norte a sul do Brasil. 

Não estão combatendo o PCC. Estão, na verdade, fortalecendo esse movimento.

Ainda não terminei esse artigo, pensarei mais um pouco e voltarei para conclui-lo.

Por hora, são apenas algumas ideias, que achei importante externar.
 

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Preso redige Habeas Corpus em lençol

http://jornal-do-brasil.jusbrasil.com.br/politica/120000036/ce-preso-escreve-em-lencol-pedido-de-habeas-corpus-ao-stj?utm_campaign=newsletter&utm_medium=email&utm_source=newsletter
CE preso escreve em lenol pedido de habeas corpus ao STJ
Um preso que cumpre pena na região metropolitana de Fortaleza (CE) usou um lençol para escrever um pedido de habeas corpus. No texto, Hamurabi Simplicio Contri da Silva alega que já teria direito ao sistema de progressão do regime semiaberto e pede que o benefício seja cumprido.
Silva cumpre pena na unidade 2 do Instituto Presídio Professor Olavo Oliveira, em Itaitinga (CE). O inusitado documento foi endereçado à ouvidoria da Ordem dos Advogados do Brasil do Estado (OAB-CE). Na tarde de terça-feira, o habeas corpus foi entregue ao ouvidor do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, pela ouvidora da OAB-CE, Wanha Rocha.
Segundo Wanha, o encarcerado se valeu de "um direito que ultrapassa os limites da prisão", sem deixar de reparar a "mídia" usada. "Em pleno século XXI, voltamos à pré-história, onde o preso usou uma espécie de pergaminho, uma forma arcaica de comunicação, para expressar o seu direito, numa época que se vive a era da tecnologia", afirmou.
CE preso escreve em lenol pedido de habeas corpus ao STJ

domingo, 18 de maio de 2014

O "caso" do artigo 366 do CPP e o tema Lei Penal no Tempo


Esse pequeno artigo também poderia se intitular: "O artigo 366 do CPP e as soluções mirabolantes da doutrina e da jurisprudência", contudo, o enfoque aqui é mais para situar o estudante a respeito da lei penal no tempo.

Antigamente, quando eu lecionava essa matéria, LEI PENAL NO TEMPO, eu perdia quase uma aula toda explicando o artigo 366 do CPP, explicando como era antes da Lei 9.271/1996 e como ficou depois dela.

Era uma missão difícil, porque um aluno que tem seu primeiro contato com o Direito Penal, necessita, para entender esse artigo, de noções elementares de Direito Processual Penal.

Antes dessa lei 9.271/1996, um acusado por um crime, no Brasil, que evadisse do distrito da culpa, sem que tivesse sido ao menos citado pessoalmente para responder à sua ação penal, era citado por Edital. Um Edital era fixado no átrio do Fórum local e o juiz ainda mandava publicar cópias desse Edital em dois jornais de principal circulação na cidade e o acusado, para quem era nomeado um defensor "ad hoc", era julgado e condenado a revelia.

Quando ele aparecesse e procurasse um auxílio jurídico, seu advogado tinha uma notícia ruim pra lhe dar: que havia um mandado de prisão contra o mesmo e que só restava se apresentar à Justiça para cumprir a sua pena, pois sua sentença já tinha transitado em julgado.

Pois bem, veio a Lei 9.271/1996 e alterou tudo isso, mudando o tratamento do tema. A nova lei trouxe uma parte boa e uma parte ruim ao réu, vide artigo 366 do CPP.

A parte boa: réu que desaparece sem ser citado, seu processo fica SUSPENSO, até que o mesmo seja preso e citado, pois a justiça expedirá mandados de prisão contra ele... Ou seja, réu não é mais condenado sem que tenha sido citado de sua ação penal.

A parte ruim: a prescrição fica suspensa também.

Por quanto tempo? A lei não diz.

Se notarem, caros alunos, a redação do artigo 366 do CPP FOI ABSOLUTAMENTE INFELIZ e ninguém questiona isso, seja em livros, seja em simpósios, seja em palestras..., o que só demonstra mesmo que estamos imersos em um vácuo intelectual, em um limbo do pensamento e do bom senso.

O artigo 366 do CPP não diz (pasmem!) por quanto tempo o processo vai ficar suspenso e a prescrição, também.

Dai surgiram opiniões doutrinárias sobre isso, porque os doutrinadores... Ah! Os doutrinadores e juristas, são sempre criaturas de rica imaginação:

- Houve quem defendesse que ficariam suspensos PRA SEMPRE, o processo e a prescrição. Imaginem o caso daquele Promotor de Justiça, já velhinho, aposentado, que vê um acusado fugitivo, também velhinho, na feira de sua cidade e diz: - Você!!! Eu me lembro do seu processo, em 1997, quando você fugiu...

Ridículo, né?


- Houve quem dissesse que a parte processual penal da lei (o processo penal) deveria ficar suspensa e parte penal (prescrição penal) não, mas apenas para quem cometeu crime antes da mudança da lei e não havia sido julgado. O Professor Luiz Flávio Gomes, a meu ver, com lógica, defendeu isso. 

Quando leciono LEI PENAL NO TEMPO, explico que há uma corrente doutrinária que defende a combinação de partes de leis penais (anterior e posterior) pra beneficiar o réu, tema este, polêmico, sendo que nem todo mundo aceita esse posicionamento.

O que propôs o Professor LFG, a meu ver, corajosamente, foi que para aqueles acusados que praticaram crimes ANTES da mudança do artigo 366 do CPP e que ainda não tinham sido julgados (réus que evadiram do distrito da culpa e sequer tinham sido citados pessoalmente de suas ações penais), com o advento da Lei 9.271/199, o juiz utilizasse a parte boa da lei anterior (prescrição que não ficava suspensa, continuava correndo), com a parte boa da lei posterior (processo fica suspenso).

Pense no que isso daria: um processo penal suspenso, com a prescrição correndo a favor do réu. 

Não aceitaram esse  posicionamento, porque a Lei 9.271/1996  tratou de norma penal mista, com conteúdo penal e processual penal (heterotópica, vide artigo abaixo).

E,

- Houve a criação da doutrina e da jurisprudência, que vieram dizer que o processo deve ficar suspenso pelo prazo máximo da prescrição penal, artigo 109 CP pela máxima pena em abstrato para aquele crime ainda nem julgado e depois, correr pelo mesmo prazo.

Isso significa, amigos, que um homicídio, que prescreve em 20 anos, prescreveria em 40 anos. Pois o processo ficará parado por 20 anos e a prescrição, então, volta a correr por mais 20 anos.

FOI ESSA A SOLUÇÃO ENCONTRADA pela maioria, atualmente...

- Outra visão interessante, esposou-a o nosso STJ, por meio da Súmula 415:


O período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada.

Essas (muito criativas) opiniões têm amparo legal?

NÃO.

São meras invenções doutrinárias, jurisprudenciais, que emitiram tentando corrigir aquilo que não tem correção: a omissão legislativa, em não dizer CLARAMENTE no artigo 366 do CPP por quanto tempo a prescrição deve ficar suspensa.

Eu defendi o seguinte:

- Na ausência de previsão legal (SOBRE QUANTO TEMPO A PRESCRIÇÃO DEVE FICAR SUSPENSA, NO ARTIGO 366 DO CPP), eu, Professor André Luiz Carvalho Greff, Titular das Disciplinas de Direito Penal Parte Geral e Parte Especial da Uems- Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, Unidade de Dourados/MS, já há 15 anos, invocando o princípio do "in dubio pro reo", na ausência de previsão legislativa e porque nenhuma das criações doutrinárias e jurisprudenciais TEM FORÇA DE LEI e que TODAS FORAM PREJUDICIAIS AOS RÉUS, defendo que a prescrição penal fique suspensa por UM SEGUNDO!

Nada mais justo, né?

Afinal, estaremos adotando o princípio, tão decantado em aulas de graduação, do "in dubio pro reo". Na dúvida sobre quanto tempo a prescrição deveria ficar suspensa, defendo que fique por 1 segundo.

Nada mais coerente, né? Ante à ausência de previsão legislativa sobre quanto tempo fica suspensa a prescrição no artigo 366 do CPP.

NÃO, não acho certo o STJ dizer que fica suspenso pelo tempo máximo da pena cominada. Isso porque o STJ NÃO É LEGISLADOR PENAL, sua Súmula fere o que dispõe o artigo 22, inciso I, da CF... Não compete ao STJ legislar em matéria penal no Brasil. Isso está errado.

NÃO, não acho certo doutrinadores penais inventarem que deve ficar suspensa a prescrição eternamente ou pelo dobro do prazo da prescrição máxima para aquele crime, porque também não são legisladores penais. Porque são doutrinadores Promotores, Juízes, até Desembargadores, mas não são Legisladores em matéria penal.

Mas, infelizmente, ainda não fui ouvido.

Bem, o que eu desejaria que meus alunos, principalmente da 2a. série, percebessem, é que no artigo 366 CPP, temos um excelente exemplo de norma penal heterotópica, um misto de norma penal (Prescrição) com processual penal (Suspensão de Processo).

E que  sempre que tivermos uma lei assim, teremos POLÊMICAS, pois uns defenderão que a parte benéfica da lei, de cunho penal, retroaja para beneficiar o réu... E a parte ruim, não retroaja para atingir réus, acusados, que cometeram crimes antes do advento da lei e não foram julgados, ainda.

Dúvida de estudante (2)

Indagou-me um aluno por email, se lei processual penal nova pode retroagir para BENEFICIAR o réu.

Pois nas minhas aulas sempre ensinei que lei penal nova pode retroagir, desde que para beneficiar o réu.

O tema é de processo penal e não de penal, contudo, devemos estar atentos à interdisciplinariedade entre essas ciências, e, para sanar dúvida, direi o seguinte:

Em se tratando de LEIS PROCESSUAIS PENAIS são outras regras, DIFERENTES das do direito penal.

Há algumas correntes para solução de conflitos de leis processuais penais que se sucedem no tempo:

PRIMEIRA CORRENTE = A LEI PROCESSUAL QUE INICIA UM PROCESSO O REGERÁ ATÉ O FIM : não é aceita no nosso ordenamento.

SEGUNDA CORRENTE = A LEI PROCESSUAL QUE INICIOU UMA FASE DO PROCESSO, REGERÁ ESSA FASE ATÉ O FIM : também não é aceita.

* aqui é complicado, porque um aluno de segundo ano ainda não conhece processo penal, nem as fases do processo penal...

TERCEIRA CORRENTE = SISTEMA DO ISOLAMENTO DOS ATOS PROCESSUAIS / PRINCÍPIO DO EFEITO IMEDIATO / PRINCÍPIO DO "TEMPUS REGIT ACTUM" : é o sistema adotado no Brasil, vide artigo 2 do CPP.

Ou seja, meus caros alunos, em PROCESSO PENAL A LEI PROCESSUAL PENAL NÃO RETROAGI, MESMO QUE MAIS BENÉFICA PRO RÉU...

Ou seja, é o oposto do direito penal... Em que retroage!

Logo,  em provas, concursos, responda sempre o seguinte: que a regra do direito penal é diferente da do processo penal, em se tratando de retroatividade de leis penais... Se no direito penal sempre retroage a lei penal mais benéfica (exceção p/ leis penais excepcionais ou temporárias), no processo penal não acontece assim. Uma lei processual penal, ainda que mais benéfica, não retroagirá para abranger ato processual já praticado sob a vigência de lei anterior.

Contudo, há exceções, ATENÇÃO:

Quando as normas processuais penais tiverem CONTEÚDO MISTO, ou seja, uma mistura de norma PROCESSUAL PENAL com DIREITO PENAL (também chamadas de normas HETEROTÓPICAS ou NORMAS PROCESSUAIS PENAIS DE EFEITO MATERIAL OU PENAL), nesse caso PODE RETROAGIR.

Cito exemplos:

- O artigo 366 do CPP (no artigo acima, explico melhor): tem um misto de norma penal com norma processual penal... Quando esse artigo surgiu no CPP, trouxe muita polêmica. Antes desse artigo surgir, um réu que fugisse, sem ser citado de sua ação penal, poderia ser processado, julgado e condenado à revelia... Quando ele aparecesse, só lhe restaria CUMPRIR SUA PENA... O artigo 366, com nova redação, colocou fim nisso: hoje, o réu que some, desaparece, sem ser citado de sua ação, o processo fica suspenso (aqui a norma é de processo penal), mas a prescrição fica suspensa também (aqui a norma é de direito penal). Por ser de conteúdo misto, quando essa mudança ocorreu, houve quem defendesse (Prof. LFG) que a parte material deveria retroagir para beneficiar o réu... Ou seja, o processo ficaria suspenso e a prescrição continuaria correndo.
* Isso não foi aceito, estudaremos quando analisarmos PRESCRIÇÃO PENAL...

- Artigo 89, da lei 9.099/95, lei dos juizados... Essa lei e esse artigo, vieram autorizar o MP a propor suspensão condicional do processo. Por ser norma de conteúdo misto (processo e penas alternativas), retroagiu para casos anteriores...

- Artigo 225 do  CP: é norma penal, está no CP, mas tem conteúdo processual penal também. Naqueles casos de crimes de estupro (por exemplo) em que antes da mudança desse artigo, se exigia a autorização dos pais da vítima ou da vítima para processar o réu, mesmo após a lei, se o réu tivesse cometido o crime antes dessa mudança, valia a lei anterior que exigia essa autorização de processamento ou representação da vítima.

Ou seja, amigos, em regra, lei processual penal não retroage, exceto normas heterotópicas. Também acho importantíssimo que os nossos alunos MEMORIZEM o seguinte: se no direito penal não se admite interpretação de lei contra o réu, NO DIREITO PROCESSUAL PENAL SE ADMITE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA CONTRA O RÉU.

Isso é pacífico na doutrina e na jurisprudência.

Ou seja, surgindo uma lei processual penal nova, que prejudique um acusado de um crime, ele que se prepare para tempestades, pois a princípio é a lei mais severa que vai ser aplicada ao seu processo, se ainda não estiver finalizado.

É isso que eu tinha a esclarecer e dividir com todos.

Obrigado a quem indagou, pois me deu a chance de enriquecer nosso aprendizado.




Dúvida de estudante

Indagou-me uma estudante, por email, o seguinte:

No caso de apenamento por um crime de furto simples, cuja pena em abstrato é de reclusão de 1 a 4 anos, mais multa (Artigo 155, caput, CP), caso o magistrado fixe pena final mínima de 1 ano, pode substituir essa pena por multa, com fulcro no Artigo 44, Parágrafo 2o, do CP, sendo que neste caso o réu ficaria com duas multas, uma da substituição e mais uma que o próprio artigo exige?

Respondi no email e responderei por aqui também:

Rogério Sanches Cunha, em seu livro Manual de Direito Penal Parte Geral, volume único, Editora JusPODIVM, 2013, página 450, trata justamente dessa dúvida.
 
Indaga ele o seguinte:
 
"Imaginemos que JOÃO está sendo julgado por furto simples (art. 155 do CP), punido com reclusão de 1 a 4 anos, e multa. Na sentença, o magistrado, aplicando o critério trifásico, condena JOÃO ao cumprimento de 1 ano de reclusão, e multa.
 

Presentes os requisitos legais, pode o magistrado substituir a pena de prisão por outra multa, cumulando, portanto, a multa substitutiva da prisão com a multa principal?".
 
E ele mesmo responde que SIM, é perfeitamente possível.
 
Isso não fere a Súmula 171 do STJ, porque essa súmula só impede de se fazer isso quando o crime estiver previsto em lei penal especial.

Essa Súmula 171 do STJ é mais uma daquelas Súmulas difíceis de se entender: "Cominadas cumulativamente, em lei especial, penas privativas de liberdade e pecuniária, é defeso a substituição da prisão por multa."

Não se consegue entender porque apenas em lei penal especial (tipo a lei de drogas) é defeso, proibido, substituir. Os crimes do CP, por serem comuns, para bom entendedor, não é defeso substituir.
 
Contudo, mesmo não sendo vedado, os juízes preferem não apenar dessa forma, porque sabem que ambas as multas reverterão ao FUNPEN - Fundo Penitenciário, que fica muito longe do distrito da culpa.

Preferem os juízes, fixar apenas uma multa e a pena privativa, eles substituem por prestação de serviços à comunidade, dando ainda ao apenado a possibilidade de, se quiser, pagar em PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA (do Artigo 43, I, CP) essa pena de prestação de serviços.

Não se confunde multa (prevista no artigo 44, p. 2o., do CP e no 155, caput, CP, do exemplo citado acima), que vão pro Fundo Penitenciário, com a pena de prestação pecuniária, que reverte para uma entidade assistencial da localidade onde o apenado cometeu seu crime.

Muito mais útil, muito mais pedagógico, é destinar um dos pagamentos à uma entidade assistencial local, do que fixar duas penas de multa, que reverterão ao FUNPEN, distante do distrito da culpa.

Mas nada impede que se julgue dessa forma.

Em sendo assim, no caso citado pela estudante, o juiz certamente fixará apenas uma multa, destinada ao FUNPEN, já que esta não há como deixar de aplicá-la e a pena de 1 ano de reclusão, o juiz irá substituir por prestação de serviços à comunidade, sendo que na própria sentença ainda deixará uma opção ao apenado, de pagar essa pena, em prestação pecuniária, por exemplo, substituir cada três meses dessa prestação de serviço, por um terço do salário mínimo, pago a uma entidade assistencial que o juiz apontar, sendo esta uma pena substitutiva de prestação pecuniária. 
...
* Nota importante: esqueci de mencionar, que logo que esse artigo 44 CP foi alterado, pela lei 9.714/1998, o Professor Damásio de Jesus chegou a defender a tese de que uma multa absorveria a  outra, que não havia sentido em se fixar duas multas, em vez de uma só.
A meu ver, tinha (e tem, pois acredito que ainda perfilhe essa ideia) razão o ilustre penalista.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

O CBT e a nova lei 12.971 de 9.5.2014



Foi sancionada no último dia 9 de maio de 2014, a Lei 12.971, que altera o Código Brasileiro de Trânsito, Lei 9.503/1997.
Trazendo uma vacatio legis de seis meses, a nova lei só entrará em vigor no país no dia 1o. de novembro de 2014.
No entanto, a lei já causa polêmicas, como citamos na nossa penúltima postagem, artigo do Professor Luiz Flávio Gomes.
O que nos causou espanto, foi a análise que o legislador brasileiro fez a respeito do racha de veículos, com consequência morte. 
Vejam só: se um motorista, dirigindo imprudentemente (mas não em racha de veículos), mata uma pessoa, sua pena será de reclusão de 2 a 4 anos, até este momento, pena de detenção. Mas se esse mesmo motorista, fazendo racha de veículos, apenas lesionar uma pessoa, a pena já será de reclusão de 3 a 6 anos. Ora, não pode a pena para o homicídio ser menor do que a pena para a lesão. Até porque, diz o mesmo legislador que o racha de veículos do artigo em questão é sem dolo, ou seja, crime culposo também.
Contudo, queremos refletir ainda mais a respeito do artigo 308 da nova lei:
"Art.308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada;
Pena: detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1o  Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo."
 O STF já havia pacificado que racha de veículos gera dolo eventual para o crime de homicídio, artigo 121 do CP (vide HC 101698 do STF).
Nesse julgado entendeu o Supremo que dirigir estando embriagado e matar alguém no trânsito é caso de crime culposo e não doloso, pois estaria havendo uma banalização da teoria da "actio libera in causa".

Já a conduta de dirigir fazendo rachas e matar alguém, o caso era de dolo eventual. Inclusive citamos, desse julgado HC 101698 STF, os seguintes trechos:
"14. A diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente encontra-se no elemento volitivo que, ante a impossibilidade de penetrar-se na psique do agente, exige a observação de todas as circunstâncias objetivas do caso concreto, sendo certo que, em ambas as situações, ocorre a representação do resultado pelo agente.
15.Deveras, tratando-se de culpa consciente, o agente pratica o fato ciente de que o resultado lesivo, embora previsto por ele, não ocorrerá. Doutrina de Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. 1., p. 116-117); Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal – parte geral, Rio de Janeiro: Forense, 2006, 17. ed., p. 173 – grifo adicionado) e Zaffaroni e Pierangelli (Manual de Direito Penal, Parte Geral, v. 1, 9. ed – São Paulo: RT, 2011, pp. 434-435 – grifos adicionados).
 16.A cognição empreendida nas instâncias originárias demonstrou que o paciente, ao lançar-se em práticas de expressiva periculosidade, em via pública, mediante alta velocidade, consentiu em que o resultado se produzisse, incidindo no dolo eventual previsto no art. 18, inciso I, segunda parte,verbis: (“Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo ” - grifei).
17.A notória periculosidade dessas práticas de competições automobilísticas em vias públicas gerou a edição de legislação especial prevendo-as como crime autônomo, no art. 308 do CTB, in verbis: “Art 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:”.
18. O art. 308 do CTB é crime doloso de perigo concreto que, se concretizado em lesão corporal ou homicídio, progride para os crimes dos artigos 129 ou 121, em sua forma dolosa, porquanto seria um contra-senso transmudar um delito doloso em culposo, em razão do advento de um resultado mais grave. Doutrina de José Marcos Marrone (Delitos de Trânsito Brasileiro: Lei n. 9.503/97. São Paulo: Atlas, 1998, p. 76).
19. É cediço na Corte que, em se tratando de homicídio praticado na direção de veículo automotor em decorrência do chamado “racha”, a conduta configura homicídio doloso. Precedentes: HC 91159/MG, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ de 24/10/2008; HC 71800/RS, rel. Min. Celso de Mello, 1ªTurma, DJ de 3/5/1996."

A pena para esse crime era de 6 a 20 anos de reclusão, pois enquadrava-se no artigo 121, caput, CP.
A nova redação do artigo 308 do CBT veio dizer, para bom entendedor, que é possível um agente criminoso, dirigir em racha de veículos, com culpa (imaginamos que consciente nesse caso) e não com dolo eventual. Mas o legislador acentua que se as "circunstâncias demonstrarem que o agente NÃO quis o resultado..." (dolo direto) "ou NÃO assumiu o risco de produzir o resultado..." (dolo eventual), a pena é de 3 a 6 anos de reclusão, "sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo", que pensamos, seja a do caput do mesmo artigo. 
Ou seja, ainda ressalva o texto legal que pode haver racha de veículos, com morte, que se amolde ao tipo penal do artigo 121, caput, CP.
A nosso ver, o que o legislador brasileiro fez, foi trazer nova celeuma no cenário jurídico nacional, dizendo "olhem, julgadores brasileiros, há racha de veículos com morte que é caso de culpa e não de dolo". Ou seja, o Ministério Público deve denunciar por homicídio doloso, a defesa deve bater até a última instância pela teses do crime preterdoloso do artigo 308 CBT e a justiça deve tardar no caso concreto por muitos anos, fazendo crescer a sensação de impunidade.
Outra crítica pontual é que com a mudança na lei, passamos a ter um caso raro na nossa legislação penal, porque uma mesma conduta criminosa vai gerar dois tipos de incriminação.
Pensamos que não haveria problemas em se prever dessa maneira, tivesse o caput apenas punições administrativas (multa e suspensão da carteira), mas na medida em que gera pena privativa de liberdade, também, temos uma óbvia dupla punição pela mesma conduta.
Podemos aventar que "dirigir fazendo racha" é a primeira conduta criminosa e "causar  morte ou lesão" a segunda. Contudo, é inegável que dirigir fazendo racha é ato de um único iter criminis quando se trata de matar alguém. Ou seja, o legislador segmentou uma conduta criminosa que a nosso ver é uma só: racha de veículos com morte.
Andou mal o legislador nessa forma de legislar, porque poderia muito bem ter usado a técnica de criação de tipos penais complexos (que são aqueles em que se fundem em um mesmo tipo penal, ofensa a dois ou mais bens jurídicos), como o latrocínio.
A maneira como se legislou sobre o tema, demonstra uma total ignorância de certos institutos do Direito Penal, de há muito sedimentados na lei, na doutrina e na jurisprudência, como a regra do "non bis in idem" e o principio da consunção.
O absurdo é tão grande, que seria o mesmo que o legislador resolver punir um homicida pelos golpes de faca que desfere na vítima e mais o homicídio que causou com tais golpes.
Evidentemente que fazer racha e matar alguém nesse racha de veículos, tudo se subsume numa única conduta criminosa, que deveria, então, ter sido prevista em um tipo penal único, com a pena mais elevada que a prevista no artigo 308.
Mas a nossa confusão mental segue, ao lermos o parágrafo 2o, do mesmo artigo:
"§ 2o  Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.” (NR)
E indagamos seriamente se é mesmo possível alguém dirigir fazendo racha e não assumir, pelo menos, o risco da sua conduta. E quais seriam as circunstâncias que fariam presumir que o agente não quis, nem assumiu o risco, ao dirigir fazendo racha.
Voltando à distinção clássica entre dolo eventual e culpa consciente, temos o dolo eventual quando um agente diz a si mesmo, mentalmente, "se ocorrer morte, para mim pouco importa"; e temos culpa consciente, quando o agente diz a si mesmo, mentalmente, "se houver possibilidade de morte, acredito que serei capaz de evitá-la". Já o dolo direto é o querer um resultado.
Pensamos que o novo parágrafo do artigo 308 trará grandes desafios para nossos julgadores e intérpretes das leis penais. O desafio é analisar quando dois motoristas, fazendo racha de veículos, não querem, nem assumem o risco de um deles morrer. É fazer justamente aquilo que o julgado acima (STF) acentuou a dificuldade: adentrar a psique do agente. Pois não acreditamos que circunstâncias externas venham demonstrar o oposto.
Ou seja, nossos legisladores ignoraram por completo decisões inclusive de nossa mais alta Corte, o STF, nas quais já se laborou na tese do homicídio com assunção de risco nessa hipótese.
Eis, então, o desafio que tal mudança propõe: ignorar tudo que se pensou sobre o assunto, em longas e cansativas leituras e meditações, para se ajustar uma determinada conduta de uma forma diferente da que se vinha fazendo.
A nosso ver, caros estudantes, será declinar do bom senso, para se adotar o absurdo.
===
Comentário um dia após o texto acima:
 Após uma noite de sono, despertei com a ideia de que o que pretenderam foi criar um crime preterdoloso. O racha de veículos é doloso (óbvio), já o resultado morte, que o legislador agora vem dizer que não é desejado, culposo. Na verdade, usaram texto semelhante ao do artigo 129, p. 3o. CP. Mas ressalvaram que esse crime pode continuar sendo doloso. O resultado prático disso, é que o MP deverá denunciar esses casos como homicídio doloso e a defesa deverá brigar até a última instância, pela tese do crime preterdoloso, o que deve fazer com que os casos se arrastem, indefinidos e sem solução, por muitos anos. Até que o STF, de novo, encontre uma fórmula mágica de imaginar racha de veículos com morte, que seja culposo... Distinguindo-o de racha de veículos que seja doloso.
===
Outra questão interessante: o Professor Luiz Flávio Gomes entendeu que o tipo penal do novo artigo 302, parágrafo 2o, CBT:
§ 2o. Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:


Confunde-se com o novo tipo legal do artigo 308 acima. Pois ambas as condutas dizem respeito à disputa de rachas em pistas de corrida ou vias públicas.

Novo Artigo do Professor Luiz Flávio sobre nova Lei de Trânsito

"Nova lei de trânsito: barbeiragem e derrapagem do legislador (?) 

Publicado por Luiz Flávio Gomes





Meus amigos: mesmo estando alguns dias fora do Brasil, li o texto da nova lei de trânsito, sancionada pela presidenta Dilma e publicada no dia 12/5/14 (só vai entrar em vigor em novembro/14). Nós estamos loucos (eu talvez por causa do fuso horário ou outra causa a ser investigada) ou o legislador é que fez uma tremenda barbeiragem? Vejam a questão (opinem também, porque gostaria de saber quem está redondamente equivocado):
O legislador agregou no delito de homicídio no trânsito (CTB, art. 302: Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor) uma forma qualificada (pena maior), com a seguinte redação:
“§ 2o Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:” “Penas – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.” (NR)”
Como se vê, no art. 302, quando a morte resulta (1) de direção embriagada ou (2) de participação em “racha” ou (3) de manobra arriscada, a pena será de reclusão (não de detenção), de dois a quatro anos (muda de detenção para reclusão, o que significa pouca diferença na prática).
Pois bem: no art. 308 o legislador agravou todas as penas previstas para quem participa de “racha”. Foram contempladas três situações: (1) participa do “racha”, gera risco de acidente, mas não lesa ninguém (pena de 6 meses a 3 anos + sanções acessórias); (2) participa do “racha” e gera lesão corporal grave (pena de 3 a 6 anos mais sanções acessórias); (3) participa do “racha” e gera morte (pena de 5 a 10 anos mais sanções acessórias). Vejamos o novo texto legal:
“Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:
Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1o Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.
§ 2o Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.” (NR)
O problema: aqui no art. 308 o resultado morte provocado culposamente aparece como qualificadora do delito de participação em “racha”. Já no art. 302 (homicídio culposo), é a participação em “racha” que o torna qualificado (mais grave). No delito de participação em “racha”, é a morte que o qualifica. No delito de homicídio, é a participação no racha que o qualifica. Mas tudo isso é a mesma coisa! O mesmo fato foi descrito duas vezes. Na primeira situação (art. 302), a descrição legal foi de trás para frente (morte em virtude do “racha”); na segunda (art. 308), da frente para trás (“racha” e depois a morte). Para não haver nenhuma dúvida (talvez essa tenha sido a preocupação do emérito legislador), descreveu-se o mesmo fato duas vezes. Seria uma mera excrescência legis (o que já é bastante reprovável), se não fosse o seguinte detalhe:
No art. 302 (homicídio culposo em razão de “racha”) a pena é de reclusão de dois a quatro anos; no art. 308 (“racha com resultado morte decorrente de culpa”) a pena é de cinco a dez anos de reclusão! Mesmo fato, com penas diferentes (juridicamente falando, sempre se aplica a norma mais favorável ao réu, ou seja, deve incidir a pena mais branda – in dubio pro libertate).
O legislador, quando redigia o art. 302, era um (talvez fosse o período da manhã); quando chegou na redação do art. 308, passou a ser outro (talvez já fosse o período da tarde). O fato é o mesmo, mas as valorações punitivas são completamente diferentes. E agora? O legislador derrapou ou nós é que estamos loucos? (gostaria de ouvir a opinião de vocês). Se a loucura for minha, nada poderá ser feito (a não ser me internar). Se a barbeiragem (e derrapagem) foi do legislador, vamos correr para corrigir o erro. O Brasil não merece mais uma polêmica legislativa, geradora de enorme insegurança.

Fonte:  http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/118689473/nova-lei-de-transito-barbeiragem-e-derrapagem-do-legislador".

====
Comentário do Prof. André Greff: 
 
A lei nova é a de número 12.971, de 9 de maio de 2014, abaixo.
Eu vejo com imensa tristeza o advento desse novo texto legal, completamente confuso, como bem comentou o Prof. LFG acima e o Sr. Antônio, em comentário ao artigo dele:

"Antonio Luiz Barbosa Nunes
9 votos
Para piorar, atropelar e não matar gera pena maior do que atropelar e matar...
Com lesão corporal pena de reclusão de 3 a 6 anos

Homicídio pena de reclusão de 2 a 4 anos

Isso claro se for aplicado a lei mais benéfica".


E lastimo principalmente porque o STF já havia pacificado que quando o racha entre motoristas, causa a morte de um deles, o caso é de responder o que sobrevive por homicídio doloso a título de dolo eventual - Vide HC 101698 do STF.

Ou seja, o caso seria o de acompanhar esse entendimento. Logo, a pena que era de 6 a 20 anos de reclusão (121, caput, CP), para esse crime, a princípio, agora deverá ser ajustada a esse muito confuso texto de lei, que estabelece uma pena de 5 a 10 anos de reclusão e confesso não ter entendido o "sem prejuízo de outras penas" do citado texto legal.

Acaso sugere o texto legal um duplo enquadramento penal para a conduta de dirigir fazendo racha de veículos e mais a conduta de matar alguém nesse racha?

Não me parece uma solução adequada, porque de há muito o princípio da consunção está estabelecido no nosso sistema penal.

Outra coisa: estamos estudando com a turma do 2o ano de Direito da Uems o tema "Sucessão de Leis Penais no Tempo".

Indago aos senhores e sugiro que pesquisem esse tema, já que teremos avaliação na semana que vem: uma vez que a lei nova parece trazer apenamento mais benéfico para quem matar alguém em um racha de veículos, uma vez que essa nova lei 12.971, de 9 de maio de 2014, ainda se encontra em período de "vacatio legis" (só entrará em vigor no dia 1 de novembro de 2014, indago: um Promotor de Justiça, que estiver em mãos um inquérito policial de um crime de racha de veículos, que tenha tido morte de um dos agentes, tendo em vista o julgado do STF acima, que diz que o crime é de homicídio doloso a título de dolo eventual (art. 121 CP), pode já denunciar esse crime pelo artigo 308 do CBT?

Questão interessante, hein?


De resto, uma lástima essa nova lei! 


Vigência
Altera os arts. 173, 174, 175, 191, 202, 203, 292, 302, 303, 306 e 308 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, para dispor sobre sanções administrativas e crimes de trânsito.

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o  A Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 173.  Disputar corrida:
.............................................................................................
Penalidade - multa (dez vezes), suspensão do direito de dirigir e apreensão do veículo;
.............................................................................................
Parágrafo único.  Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de 12 (doze) meses da infração anterior.” (NR)
Art. 174.  Promover, na via, competição, eventos organizados, exibição e demonstração de perícia em manobra de veículo, ou deles participar, como condutor, sem permissão da autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via:
.............................................................................................
Penalidade - multa (dez vezes), suspensão do direito de dirigir e apreensão do veículo;
.............................................................................................
§ lo  As penalidades são aplicáveis aos promotores e aos condutores participantes.
§ 2o  Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de 12 (doze) meses da infração anterior.” (NR)
Art. 175.  Utilizar-se de veículo para demonstrar ou exibir manobra perigosa, mediante arrancada brusca, derrapagem ou frenagem com deslizamento ou arrastamento de pneus:
.............................................................................................
Penalidade - multa (dez vezes), suspensão do direito de dirigir e apreensão do veículo;
.............................................................................................
Parágrafo único.  Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de 12 (doze) meses da infração anterior.” (NR)
“Art. 191.  ...........................................................
.............................................................................................
Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir.
Parágrafo único.  Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses da infração anterior.” (NR)
“Art. 202.  .....................................................................
.............................................................................................
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (cinco vezes).” (NR)
“Art. 203.  .....................................................................
.............................................................................................
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (cinco vezes).
Parágrafo único.  Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses da infração anterior.” (NR)
Art. 292.  A suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor pode ser imposta isolada ou cumulativamente com outras penalidades.” (NR)
“Art. 302.  ..................................................................
§ 1o  No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente:
I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;
II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;
III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;
IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.
.............................................................................................
§ 2o  Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:
Penas - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.” (NR)
“Art. 303.  ...................................................................
Parágrafo único.  Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) à metade, se ocorrer qualquer das hipóteses do § 1o do art. 302.” (NR)
“Art. 306.  ...................................................................
.............................................................................................
§ 2o  A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
§ 3o  O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia ou toxicológicos para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.” (NR)
Art. 308.  Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:
Penas - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1o  Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.
§ 2o  Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.” (NR)
Art. 2o  Esta Lei entra em vigor no 1o (primeiro) dia do 6o (sexto) mês após a sua publicação.
Brasília, 9 de maio de 2014; 193o da Independência e 126o da República.
DILMA ROUSSEFF
José Eduardo Cardozo
Gilberto Magalhães Occhi
Este texto não substitui o publicado no DOU de 12.5.2014